PURA APELAÇÃO Benjamin Constant: fake news para provocar o ciúme de Deodoro da Fonseca

No Brasil, o povo é pé de página – nota de rodapé na história de seus cento e trinta anos de República. República não proclamada, mas, como veremos, decretada e sem participação popular. República feita sem alma, sem alicerces, sem ideais… e assim seguiu a vida no ritmo do maxixe… e a desigualdade social…

Não é da própria população brasileira a responsabilidade de se ver apartada do nosso modorrento processo político e do centro das decisões. Não! Frise-se que não! O povo é mera citação, porque assim o fazem os eternos rearranjos das elites, a contar do próprio rearranjo da decretação do regime republicano e a consequente derrubada da monarquia de Dom Pedro II. Vez por outra, a massa de brasileiros se julga protagonista da história, imagina trazê-la nas mãos, embora quase sempre seja induzida a tal sentimento, induzida a buscar um salvador da pátria, induzida a buscar o “outro” no sentido psicanalítico e lacaniano de “desejar um pai”. O povo já pegou em armas contra ditadores, já apanhou de forças repressivas cantando o hino nacional, já pintou e pinta o rosto na utópica luta pelo fim da corrupção, já lotou avenidas das principais cidades, já vestiu camiseta amarela, já vestiu branco, já vestiu preto. Ao final, são sempre os donos do poder que se sentam à mesa, embaralham as cartas, cortam o baralho, recolhem para si os ases… e ditam as regras do jogo no andar de cima para uma sociedade extremamente desigual, o que afronta o republicanismo.

“Sem banana, macaco se arranja; E bem passa monarca sem canja” (Trecho de canção de 1889, extraído do livro  “A República Cantada”)

DOM PEDRO II “A monarquia tropeça mas não cai”.Caiu após o Baile da Ilha Fiscal

O povo, em nossa República, não é alienado — é alijado. Motivo: a engrenagem do maquinário republicano nasceu com defeito de fabricação, e na base desse defeito está o conceito sociológico de patrimonialismo, desenvolvido por Max Weber, mas tratado, aqui, além da simples apropriação do público pelo privado — patrimonialismo bem mais amplo, que chegou ao ponto, para citar um exemplo recente, de o presidente Jair Bolsonaro mexer em provas que envolvem a execução de Marielle Franco, provas que pertencem ao Estado. Ele visou a proteger a si e a sua família, no mais perfeito figurino do patriarcado da Casa Grande e do velho coronelismo. O nosso patrimonialismo foi amplamente estudado (de Gilberto Freyre a Sérgio Buarque de Holanda, de Raymundo Faoro a Fernando Henrique Cardoso e Maria Sylvia de Carvalho Franco), e tal estudo é importante na explicitação do mando das elites — é um “entre-lugar” a separar e a juntar, ao mesmo tempo, sociedade e Estado, na exata análise do sociólogo André Botelho.

A tabuleta do custódio

Escreveu ele em “Dicionário da República, 51 Textos Críticos”: “(…) o patrimonialismo acaba por exigir uma definição menos institucionalista e minimalista da própria República. A republicanização da República exige hoje ainda mais democracia do que nunca para combater as persistentes desigualdades sociais que enviezam, envenenam e tornam a esfera pública cada vez mais estreita entre nós na atualidade”. Para a historiadora Heloisa Murgel Starling, organizadora do “Dicionário” ao lado da também historiadora Lilia Moritz Schwarcz, “entramos no século 21 como um rascunho de República. No seu traço mais simples, que é a gestão do bem comum, a República no Brasil ainda é um esboço”.

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FLORIANO PEIXOTO Mão de ferro nas revoltas e Congresso fechado

Recuemos no tempo: 9 de novembro de 1889, e o Império, para fingir que estava sólido, dá um suntuoso e aparatoso baile — o Baile da Ilha Fiscal, localizada na antiga Baía da Guanabara. Doente e acompanhado por seu médico particular, doutor Mota Maia, Pedro II quase vai ao chão ao desembarcar. Nessas horas é melhor apelar para o senso de humor, e ele não hesitou: “a monarquia tropeça mas não cai”. Seis dias depois, frente à apatia do marechal Deodoro da Fonseca em proclamar a República devido a sua profunda amizade com o monarca, José do Patrocínio, monarquista de carteirinha, paradoxalmente a decretou na Câmara dos Vereadores. Ele escreveu que a Casa estava “lotada de populares”, enquanto, na verdade, tinha meia dúzia de gatos pingados da política. Voltemos, porém, ao baile… Ah, o baile! Promovido pelo Império, como já dissemos, não dava para entender, politicamente, que toda a elite intelectual republicana nele estivesse presente. É claro que dança e contradança de oito compassos devem mesmo descartar ideologias, mas era bem estranho os republicanos devorando camarões servidos pela Corte. Já aí começa o defeito original do maquinário do republicanismo.

Para se ter uma ideia, o militar Benjamin Constant, empedernido republicano, valeu-se de sua filha e alegou que, devido a sua teimosa vontade, ele alugara um barco para ficar, nas águas da baía, admirando a festa. Fazer parte dela seria exagero, mas deixar de ver um acontecimento de tanto luxo e tanta gala, isso também já não era viver. Republicanos e monarquistas riram juntos, dançaram juntos, embebedaram-se juntos. Para onde ia o Brasil? Essa era a dúvida, por exemplo, do personagem machadiano Custódio, que mandara pintar a tabuleta de sua confeitaria. Atônito diante dos fatos, ordenou que o pintor parasse o trabalho no “d”. Ficou assim: “Confeitaria d…”. Custódio resolvera esperar os acontecimentos e, quando as coisas tomassem um rumo, ele então colocaria “Confeitaria do Império” ou “Confeitaria da República”. Com a alma atormentada, procurou o Conselheiro Aires, que lhe dirimiu a dúvida e sugeriu colocar “Confeitaria do Custódio”. O Conselheiro, uma das mais ricas personagens de Machado de Assis, era o próprio autor: entendera tudo, bem antes do 15 de novembro, sabia que o povo, na monarquia ou na República, seguiria sendo somente um detalhe. Pois bem, vamos ao dia 15.

ARISTIDES LOBO Testemunha ocular: “o povo ficou bestializado”

A República interessava aos militares, que teriam seus soldos aumentados, aos cafeicultores, que reivindicavam uma federação e não mais queriam um poder centralizado, e a um grupo de intelectuais — pelo simples fato de serem intelectuais. Não estamos, aqui, defendendo o regime monárquico. Ao contrário. Defende-se a República, mas uma República verdadeira e na qual se dê realmente a participação democrática popular, não somente pelo voto, mas, também, na administração direta por meio dos mais deversos conselhos que, tristemente, hoje estão sendo desmontados por obra do Palácio do Planalto. De volta a 15 de novembro de 1889, o sol já ia alto e nada do marechal Deodoro da Fonseca dar o ar de sua graça como fora combinado. Extremamente gripado, ele ficou acamado, e da cama foi tirado pelo militar Benjamin Constant. Dirigiu-se então ao Campo de Santana, destituiu o Visconde de Ouro Preto da chefia dos ministérios, deu “vivas ao imperador” e novamente enfurnou-se em casa. Perplexos, os republicanos não sabiam o que fazer, até que Constant fez circular a fake news de que Silveira Martins assumiria o comando dos ministérios. Aí já era demais para Deodoro, uma vez que Silveira se constituía em seu desafeto. Nada traduz melhor a posição à margem em que o povo foi colocado do que a observação do jornalista e depois deputado Aristides Lobo, testemunha ocular que tudo acompanhou, plantado em uma esquina. Em seu artigo publicado no “Diário Popular” do dia 18 de novembro, ele escreveu a célebre frase: “o povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava. Muitos acreditavam seriamente estar vendo uma parada”.

Solidão e mala na mão

Não resta dúvida, a implantação da República, desprovida de apoio e participação popular, foi um golpe militar e civil. E os primeiros governos, do marechal Deodoro da Fonseca e de Floriano Peixoto, nada tiveram de republicanismo: imprensa censurada, Poder Judiciário ameaçado, Congresso fechado. Somente em 1894 houve a primeira eleição direta para presidente: apenas os alfabetizados votavam (ou seja, 80% da população ficava de fora), e ganhou o pleito o paulista Prudente de Morais. Pegou o trem e foi para o Rio de Janeiro, então capital da República. Na estação, somente sonolentos cães, que por ali perambulavam, o recepcionaram. Ninguém foi recebê-lo, nenhum popular se sentiu parte do processo de escolha, nem Floriano Peixoto esteve lá para dar-lhe boas-vindas. Carregando mala e solidão, Prudente de Morais foi para o Palácio Itamaraty, então sede do governo. O escritor Artur de Azevedo, que amava Floriano, deu-se a trocadilhos e escreveu: “Floriano foi prudente, Seja Prudente um Floriano”

GETÚLIO VARGAS Com a decretação do Estado Novo, o povo voltou a ser na história apenas nota de pé de página (Crédito:Divulgação)

Assim foi a toada da chamada República Velha. Conforme observado, o povo às vezes era chamado a participar, dentro de limites bem determinados, é claro. Golpes daqui, golpes de lá, chega-se a 1930 e Getúlio Vargas, derrotado nas urnas, inaugura na República brasileira o populismo. Por meio de uma revolução, as elites que já não conseguiam tantos ganhos com a economia agrária colocaram Getúlio no poder para que fosse iniciado no País um processo mais consistente de industrialização. O povo ganhou? Ganhou, isso sim, uma bela ditadura, sete anos depois, com a decretação do Estado Novo, nos moldes fascistas.

Getúlio assegurara uma série de direitos sociais aos trabalhadores e lhes dera a Consolidação da Leis Trabalhistas (CLT). Deu dinheiro e mais dinheiro às escolas de samba para que falassem bem do Brasil e melhor ainda dele nos denominados “sambas-exaltação”. Em troca, concentrou todo o poder em suas mãos no Palácio do Catete, agora sede do governo — o mesmo catete em que Delfim Moreira, quando presidiu a Nação, passava os dias escondido atrás de cortinas e olhando o vaivém de pessoas — ele esquecia que as pontas de seus sapatos apareciam sob os cortinados. Nascida de um golpe e tantas vezes golpeada, a República, na primeira gestão de Getúlio, recebeu uma de suas mais violentas pancadas com o Estado Novo. Ele é deposto em 1945 por um golpe militar e volta pelas urnas seis anos depois. É o auge da política populista no País. O povo assim quis, mas deixe-se claro que segmentos das elites civis também o quiseram — é aquela história, quando se sente protagonista, o povo acaba perdendo porque há interesses “invisíveis” pairando no ar (ah, o defeito de fabricação no maquinário). Getúlio, pelo Partido Trabalhista Brasileiro, ganhou do brigadeiro Eduardo Gomes com 3.849.000 votos (48% do total). Vitória estupenda! Tão estupenda que fez do Brasil o quintal de sua casa e mergulhou o País naquilo que o udenista Carlos Lacerda, igualmente populista e demagogo, chamava de “Mar de Lama” em seu jornal “Tribuna da Imprensa”. Com Getúlio houve um surto desenvolvimentista (sempre passamos por tais surtos, nunca houve de fato um projeto duradouro de desenvolvimento) e ocorreu também um surto de pseudoparticipação popular. Não faltam momentos assim na nossa história com tantos outros governantes, ficando claro, então, que elegemos nesse artigo as ocorrências de pico em que o povo é induzido a achar que vai ganhar mas acaba perdendo, porque lá atrás, no 15 de novembro, já se viu “bestializado” diante da “parada militar”.

DANTE DE OLIVEIRA Os donos do poder deram as cartas: sem Diretas Já (Crédito:Divulgação)

“Floriano foi prudente, Seja Prudente um Floriano”.  (Artur de Azevedo, florianista, ironizando  Prudente de Morais, extraído  do livro “A República Cantada”)

Outro desses momentos, aqui eleito, se refere à espetacular campanha de comícios por todo o Brasil pedindo eleições diretas para a Presidência da República no final da ditadura militar. O povo se viu roteirista, autor e ator das “Diretas Já”, defendendo a emenda do parlamentar Dante de Oliveira. A rigor, é triste falar, mas se deve falar. Como dizia um dos melhores dramaturgos do Brasil, Oduvaldo Viana Filho, em “Rasga Coração”: “olhar nos olhos da tragédia é dominá-la”. Então, vamos lá: a ditadura só caiu porque estava podre e porque já não interessava aos militares, terrivelmente desgastados, continuarem no poder. Caiu porque a elite econômica do País já não tinha interesse que o regime prosseguisse, uma vez que a nossa economia estava cambaia demais. O povo sonhou, o povo vestiu camiseta amarela, o povo transbordou as ruas de esperança. Por cima dele, no entanto, costurava-se a saída que os militares aceitavam, a saída da eleição indireta à Presidência da República por meio do colégio eleitoral. E assim foi feito, nada de “Diretas Já”. Deu colégio, com a vitória de Tancredo Neves contra Paulo Maluf, mas não deu urnas. Tancredo faleceu antes da posse e José Sarney, o vice que sempre apoiara o regime militar. “Para haver República no Brasil, precisamos de repúblicos. E eles estão em falta. São aqueles dispostos a deixar de lado os interesses egoístas em nome do bem comum”, escreve Heloisa Murgel Starling. República que nasce sem povo, sem povo sobrevive aos trancos e barrancos. Um povo que, ampliando-se a definição de Euclides da Cunha, brilha, luta e está de parabéns em sua jornada de 130 anos como Hércules-Quasímodo: Hércules, pela força da esperança em tocar o barco para frente sem ver porto seguro; Quasímodo, pela deformação do nascimento da República.

 


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