Ele desafiou até mesmo a mãe ao nascer. Ela planejava para o dia 13 de junho para homenagear Santo Antônio, mas ele veio antes, no dia 6 de junho de 1939. Hoje, Antônio Pitanga está em isolamento social, junto com a esposa Benedita da Silva, deputada federal e ex-governadora do Rio de Janeiro. Morador das proximidades do aterro do Flamengo faz sua caminhada matinal e depois se organiza para os afazeres em casa. Também ajuda a esposa com as tarefas do gabinete. Pitanga tem um currículo de sucesso na TV, no teatro e no cinema. Aos 81 anos, participou de mais de 50 filmes e continua na ativa. Seu último filme “Casa de Antiguidades” representa o Brasil no Festival de Cannes e tem como tema principal o racismo. O seu próximo projeto é o filme “Males” que fala sobre a revolta do povo africano e será gravado pós-pandemia com elenco 99% negro. Crítico ao governo Bolsonaro, Pitanga é um entusiasta da juventude e acredita que o movimento negro tende a se organizar melhor. “Sou representante de uma multidão que tem um grito sufocado”, disse, em entrevista à ISTOÉ.

A arte no Brasil passou por vários momentos, foi até marginalizada. Como estão hoje: a arte e os artistas?
Nós éramos equiparados às prostitutas, e sem desmerecê-las, nós artistas não fazemos parte dessa profissão. As elites tiveram que nos engolir. O povo é a cultura! O governo é que não tem a sensibilidade e visão de nos reconhecer como profissionais. Mesmo hoje nós não estamos classificados como trabalhadores. Não dá para pensar que todos são Antônio Fagundes, Lázaro Ramos, Tony Ramos, Sônia Braga. Por trás das grandes estrelas existe um exército de invisíveis que faz o show acontecer. E agora durante a pandemia deixaram todos fora do auxílio emergencial. A cultura é um braço importante da economia nacional que movimenta R$ 24 bilhões por ano. São mais de 5 milhões de pessoas envolvidas na cultura em todo o País.

O seu trabalho mais recente, o filme “Casa de Antiguidades”, foi indicado ao Festival de Cannes. Qual a importância do reconhecimento dessa obra que fala de racismo?
É muito importante. É um personagem muito próximo de todo o início da minha carreira. Ele é um segundo “Barravento” na minha vida. Nele, lutamos contra todo tipo de preconceito, todo tipo de perseguição, seja religiosa, de cor de pele ou contra nordestinos. Eu estava nas ruas na década de 50 e 60 vendo nascer o Black Panther, Malcolm X, Martin Luther king, Patrice Lumumba. Esse personagem do “Casa de Antiguidades” está cicatrizado na minha alma. Como dizia o Waly Salomão, “o cérebro é uma ilha de edição”. Eu só puxei, já estava tudo ali. Essa obra é especial nesse momento que todas as mãos negras e brancas estão nas ruas. Porque nós negros já estamos há décadas sem conseguir respirar.

O senhor já sofreu discriminação racial?
Claro e quantas vezes. Imagina o negro que quer ser artista. Quer viver da arte. Cuja arte nem era reconhecida. Foram muitos os caminhos para poder resgatar minha autoestima, sem ter ódio, sem ter qualquer tipo de azedume, sem sentimento de vingança. Mas nessa estrada eu fui registrando quantos impedimentos tive, quantas porteiras fechadas. Sempre respondendo e não perdendo o foco no objetivo da minha caminhada. Na escola em que estudei no Ipiranga, onde estudou Castro Alves na Bahia, eu era o único negro. Existe um processo subliminar covarde para que você se renda, fique de joelhos e não tenha força para continuar. É a arte da guerra. A gente precisa ter uma fortaleza para compreender o outro e criar uma terceira ou quarta pele pra poder suportar: sem ceder e sem achar que isso é maravilhoso. Eu sou representante de uma multidão que tem um grito sufocado.

Porque o governo Bolsonaro mantém um distanciamento da classe artística?
Porque é proibido pensar. A cultura é um instrumento socializador de qualquer civilização e alcança multidões. Com voz e vez ela pode dar esclarecimento ao povo e isso não serve para o atual governo.

A atriz Regina Duarte ficou muito pouco tempo no comando da Cultura. Qual foi o papel que ela desempenhou no governo?
A Regina é uma pessoa que eu conheço há quase 50 anos. Surpreendeu-me ela assumir um cargo e dizer que era a noiva do Bolsonaro. Eu não conhecia essa Regina. Ela esteve sem nunca ter estado. Fez um desserviço à cultura. Até hoje eu quero entender o que a Regina teve na cabeça. Ela traiu seus irmãos, traiu uma categoria. É como se ela dissesse que a carreira dela é uma mentira. Porque ela representou um governo que não tem o menor respeito pelos artistas.

Onde o senhor acha que o presidente quer chegar com os ataques às instituições e aos seus opositores?
Ditadura né! Só ele tem voz. Só ele decide. Ele mesmo disse que sabia onde estava o corpo do pai do presidente da OAB, o Felipe Santa Cruz. O Bolsonaro diz que a Ditadura não fez o serviço completo, tinha que matar e esquartejar. O que me surpreende é que ele não é uma mentira. Ele falou para uma deputada no Congresso: “eu não te estupro porque você não merece”. Disse que não gosta de mulher, de gay, de negro, de índio. Que movimento raivoso é esse dos eleitores que o escolheram? Poderiam ter escolhido Ciro Gomes, Alckmin, Haddad, qualquer um.

Desde a redemocratização dos anos 80, este é o período mais difícil para a democracia brasileira?
É. Porque você vivia na democracia mais longa, 30 anos. Houve um golpe democrático, porque o Bolsonaro foi eleito pelo voto. Mas a história não mente, porque o Mussolini foi eleito pelo voto. O Hitler também foi eleito com o voto. É um golpe mais pesado para a democracia. Porque o Bolsonaro é um civil, mas que mostra bem as garras ao sentar na cadeira de presidente da República. Ele dizia no Congresso que usava a verba de gabinete para comer mulher. É uma dor grande o atual momento.

De onde virá uma solução que responda às questões de miséria e desenvolvimento social do Brasil?
Ela virá no momento em que a esquerda tiver a capacidade de sentar, tirar os seus egos, esquecer as disputas ideológicas, ter humildade de enxergar o tamanho de nação com 212 milhões de habitantes, com um povo ávido para que os políticos apresentem uma nova maneira de agir. A esquerda ainda tem um discurso democrático seja com Brizola, Lula, Fernando Henrique ou Arraes. A direita não tem nada além de um pensamento fascista.

Bolsonaro desrespeita os mais necessitados?
Ele diz que é só uma gripezinha. Ele classifica os filhos como 01, 02, 03, 04. Ele não tem coração, Bolsonaro não tem comportamento humano. Ele não tem um senso de família. Quem tem senso de família teria uma extensão da família ao lidar com o povo. Não existe o povo para ele. Os melhores amigos já estão se afastando.

A Covid-19 deixou claro que o barco Brasil não está preparado com botes salva-vidas para todos. Depois da pandemia o senhor acredita que as pessoas terão uma postura mais solidária frente à miséria.
Eu espero, mas isso não é uma questão brasileira, é uma questão mundial. O povo só se une a partir da tragédia. A solidariedade nasce com o combate ao sarampo, a gripe espanhola, na Segunda Guerra Mundial. Nesse momento a gente está tendo tempo de fazer uma revisitação aos nossos pensamentos para sermos melhores. O presidente esconde o resultado diário de mortes. Espero que a gente adquira uma consciência e saia dessa quarentena melhor.

A educação de jovens pobres no ensino público é de imensa desigualdade frente aos jovens do ensino privado. O isolamento mostrou a distância tecnológica?
Total distância. Entendo que quando você utiliza meios de comunicação, redes sociais para que o jovem com tablet e computador possa ter o direito de ter aula em casa. Mas milhões de jovens não tem esses instrumentos. É preciso que essa consciência possa emergir de nós nessa situação. Do mesmo modo que eu vivi, que eu senti por ser negro. Como você sai e constrói a partir da negação, do isolamento, da invisibilidade, do preconceito, de todo tipo de discriminação e emerge criando dignidade e autoestima? Estamos com a oportunidade de ver como a educação é realmente tratada apenas para alguns e não para a maioria.

É possível para o jovem das comunidades mais pobres, independentemente das questões raciais, competir em grau de igualdade no ensino público superior ou mesmo disputar uma vaga no mercado de trabalho?
Acredito que sim. Porque as oportunidades nascem mesmo num processo em que te negam. Aí é que você cria condições para moldar o ser humano que pretende ser. É a superação. Nós vamos sair desse processo superando muitas adversidades. Eu sou romântico. Vamos construir com a adversidade uma nova nação. Não acredito que a gente saia de tudo isso mais pobre.

Qual a expectativa das pessoas mais pobres, em especial da população negra com a atual crise econômica?
É mergulhar na fonte da educação. Independentemente de ser negro ou branco. Tem que trazer a educação para ser o pilar número um. Para, a partir da educação, crescer. Esse foi o legado que os meus pais me deram. O negro precisa disso. Nós precisamos disso. Os governantes não precisam nos dizer isso. Os nossos pais nos dizem isso desde muito cedo. O momento que o negro detém o conhecimento ele se torna muito importante. Sou fã do Luiz Gama, uma criança que nasceu livre. Com dez anos se tornou escravo, depois do pai, um fidalgo português, perder a liberdade num jogo de cartas. Ele só foi aprender a ler e escrever aos 17 anos. E esse cara virou um dos maiores advogados da causa negra. A educação é o conhecimento da alma humana.

O preconceito tende a aumentar?
Claro que vai aumentar. No momento que você detém o conhecimento ele é uma arma, uma força, é uma potência. Há um movimento no mundo que brota, para acordar. Para que os negros tenham voz e vez. Parece que surpreende esse preconceito, mas sempre esteve ali guardado. Estamos conquistando espaços que nos foram negados por centenas de anos. É uma reação visceral.

A reação da população brasileira à morte do garoto negro de 14 anos João Pedro foi proporcional ao tamanho da violência?
Não foi e é muito preocupante. Somos uma população formada por mais de 50% de pessoas negras. Nós estamos tendo uma reação muito maior com a morte do americano George Floyd do que as nossas crianças. Não só o João Pedro, assassinado com 70 tiros na sua residência, como outros 80 tiros do Exército no carro de uma família negra que ia para um chá de bebê. Não é normal. Eu fico muito espantado. Não existiu reação, não aconteceu e eu cobro isso. Precisa ter uma reação humana em se ver uma tragédia dessas. Me assusta ver como o braço do poder ainda metralha crianças negras.

Por que nos Estados Unidos a reação foi tão impactante?
Porque nos Estados Unidos você tem um componente de liderança muito forte, que é a igreja evangélica. Eu fui com a Benedita a Washington conhecer a igreja frequentada pelo Obama. A igreja evangélica americana traz pela religiosidade um calor, uma presença de organização e defesa do povo negro muito evidente. No Brasil, você tem na colonização um número de africanos sequestrados em mais de 54 países e que foram dizimados ao chegar ao maior interposto de escravos. As famílias que chegavam com conhecimento eram dizimadas ou classificadas como lotes e enviadas para distintos locais. Essa foi a realidade de fundação. Essa foi a grande manobra do colonizador para governar. O candomblé que poderia ser o guia religioso do negro do Brasil, perdeu esse elo com a causa. Nos Estados Unidos são 13% de negros, mas como uma força de organização muito maior que a nossa.

O governo Bolsonaro atrapalha no combate ao racismo?
Ele bota um presidente negro na Fundação Palmares que não se reconhece como tal.

O presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, chamou o movimento negro de: “escória maldita, que abriga vagabundos”. O que senhor responderia a ele?
É um negro que é um capataz. Ele acha que é loiro de olhos azuis. Ele não se enxerga. Ele não se olha no espelho? Que pobreza de alma desse homem! Ele está a serviço de quem, para quem? Eu tenho dificuldade de entender essa família negra que tem vergonha dele. Essa mãe que pariu esse cara tem que dizer que ele não é loiro de olhos azuis: você é negro. Sua pele grita do chicote que dobraram nas costas dos seus antepassados. O Sérgio é a avacalhação de uma raça, de um povo. Que chicote bateu nesse cara. Ele nega a Fundação Palmares que foi criada pela Benedita no governo do presidente José Sarney para dar dignidade e voz ao povo negro. Negar isso é negar a cultura brasileira. É negar dança, música, culinária, jeito de ser. Ele nasceu no coração do Brasil, não foi na Áustria. Não há muitas palavras para tentar classificar esse cidadão.

A atual geração está melhor educada para se defender dos preconceitos sociais.
Está sim. Na minha época a gente tinha a informação por cabo submarino. Por acaso até trabalhei nessa área na Uespa, uma empresa de telégrafo inglês. Você mandava a informação e só duas horas depois chegava. As notícias vinham de navio, demoravam. Hoje com tantas ferramentas tecnológicas que a globalização traz de presente dá para se comunicar com o mundo. Então tem uma juventude seja negra, branca, homens, mulheres que tem uma fonte de conhecimento para se libertar e tem condições de se organizar como nós não tivemos. A gente tem a luz do futuro. Quando eu sai do Brasil em 1964, em 16 de abril, no início da ditadura de Castelo Branco, eu fui para a África e fiquei quase dois anos por lá. Eu podia ter me exilado na Europa ou no Chile. Fui para a África porque eu queria conhecer mais, saber da minha origem, ter mais informação. Aprofundei-me na discussão racista. Entendi a importância de James Meredith, o primeiro negro que se formou numa universidade dos EUA, em 1963. Essa consciência eu tive a partir da leitura.

Em 80 anos de vida o que, essencialmente, mudou nas relações humanas no Brasil que pode nos deixar otimistas em relação ao futuro?
Mudou para melhor, eu olho no retrovisor da minha caminhada e vejo muita esperança nos olhos dessa juventude negra. O sucesso de representantes do povo negro como Thaís Araújo, Lázaro Ramos, Camila Pitanga, Fabrício Boliveira, Maju Coutinho me emociona. Porque eu vejo em cada um o resultado de uma trajetória que deu frutos. Sinto como se todos fossem meus filhos. Hoje vem uma juventude que não é racista, que não é alienada, que tem vigor e um olhar promissor. Também em relação à política essa nova juventude não é radical, ela faz política com mais generosidade. Eu tenho dito muito para a minha mulher e meus filhos que eu vou retardar a minha morte porque eu quero assistir o resultado desse projeto de humanidade. É um novo olhar que me dá força para continuar vivendo.