O PL (Projeto de Lei) 490/2007, que estabelece meios legais para a tese do marco temporal, passou a ser fortemente debatido após ter sido aprovado na Câmara dos Deputados, no dia 30 de maio. Para a professora Jolemia Cristina Nascimento das Chagas, que é doutora em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia, a proposta “representa uma inconstitucionalidade” aos direitos indígenas.

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Agora o texto tramita no Senado Federal como PL 2.903/2023, o qual pode sofrer alterações e, caso seja aprovado, segue para a sanção, ou não, do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Em entrevista ao portal, a professora explicou em detalhes o que representa o marco temporal.

ISTOÉ: Como a senhora avalia o PL 490/2007? Por que ele é considerado um retrocesso?

Jolemia Cristina Nascimento das Chagas: O “marco temporal” é uma medida ofensiva à Constituição Federal de 1988 e aos povos indígenas. Visa impor transformações culturais aos povos originários que vivem em congruência com as dinâmicas ambientais dos seus territórios. Ignora a existência de outras formas de organizações socioambientais pautadas na reciprocidade e bem viver. Invisibiliza a cultura e coloca os bens comuns (água, florestas, carbono, ar, terra, minério e a biodiversidade) para confisco do Estado e interesses privados. Apropriação e destinação dos meios de produção para atividades econômicas predatórias é uma ameaça frente ao cenário de mudanças climáticas.

O PL 490, propõe a data da promulgação da Constituição Federal brasileira de 05 de outubro de 1988 como marco jurídico para o reconhecimento do direito dos povos originários sobre seus territórios ancestrais. Restringe o direito dos povos indígenas à demarcação de suas terras, por meio de ações que comprovem a existência e ocupação do território pelos povos indígenas até a data da promulgação da Constituição Federal. Dificulta a demarcação das terras indígenas e põe em risco as já existentes. Além disso, possibilitará a implementação de grandes empreendimentos em terras indígenas, como a mineração, sem consulta prévia, livre e informada, ameaça os povos indígenas de recente contato e os sem contato com o branco.

Ignora e anistia as violações de direitos aos quais os indígenas foram e são submetidos, dentre eles, invasões e expulsão de seus territórios, deslocamento compulsório, genocídio de adultos e crianças, doenças, saques e apropriação dos bens comuns (terra, floreta, biodiversidade, minério, carbono e água), prostituição e escravidão.

Durante todo o processo histórico de discussão do “marco temporal” parlamentares e juristas, defensores do agronegócio e do capital, usam a narrativa do “marco temporal” como justificativa de “aperfeiçoar a legislação indigenista, por meio do PL 490 e seus apensos, produzidos ao longo deste debate (PL nº 1218/2007, PL nº 1606/2015, PL nº 3700/2020, PL nº 2302/2007, PL nº 2311/2007, PL nº 3896/2012, PL nº 1003/2015, PL nº 5386/2020, PL nº 5993/2009, PL nº 2479/2011, PL nº 6818/2013, PL nº 1216/2015, PL nº1218/2015).

ISTOÉ: O texto seguiu para votação no Senado. Há possibilidade de alteração no seu conteúdo?

Jolemia Cristina Nascimento das Chagas: Atualmente o texto referente ao PL 490/2007 tramita no Senado como PL 2.903/2023. Encontra-se pronto para a pauta na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária – CRA, sob a relatoria da Senadora Soraya Thronicke. Depois de passar pela CRA, o texto deverá seguir para exame da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).

No Senado, o PL pode sofrer alterações, se aprovado, seguirá para sanção do presidente Lula, o qual pode vetar o Projeto de Lei. Mesmo assim, o veto não garante que o Congresso não derrube os vetos antes que a lei entre em vigor.

ISTOÉ: O STF também debate o PL em paralelo. Isso pode atrapalhar a tramitação e causar o adiamento de sua implementação?

Jolemia Cristina Nascimento das Chagas: O Supremo Tribunal Federal, também analisa o “marco temporal”, cabendo-lhe a competência de resguardar a CF1988. O STF pode definir se o “Marco Temporal” é inconstitucional, ou se a promulgação da Constituição pode servir como “marco temporal” para essa finalidade, esse entendimento foi aplicado durante a demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, onde o STF impôs 19 condicionantes em 2009. Os indígenas Macuxi ganharam a causa em prol da demarcação de suas terras, porém, o STF estabeleceu dentre as 19 condicionantes, que as próximas demarcações de terras indígenas para os povos indígenas, considerem este povo já ocupando as terras em 05 de outubro de 1988.

O último julgamento sobre o marco temporal no STF, ocorreu no dia 7 de junho, ocasião em que o ministro André Mendonça pediu vistas para o julgamento, ou seja, pediu mais tempo para proferir seu voto. O julgamento deve ser retomado em até 90 dias após o pedido de vistas.

ISTOÉ: O texto do PL prevê para onde os índios podem ser realocados caso percam os direitos às suas terras?

Jolemia Cristina Nascimento das Chagas: O PL 490 defende os interesses da bancada ruralista e do agronegócio. Retira garantias legais da CF dada aos povos indígenas. Caso o “marco temporal” passe a vigorar como lei, desencadeará uma articulada rede sistêmica de produção de pobreza e marginalização, sujeitando essas populações a compor os índices estatísticos de desigualdade no país. A aplicação da lei acarretará perdas dos territórios ancestrais, dos ecossistemas, da biodiversidade, essenciais para reprodução da vida e organização dos povos indígenas que vivem e conservam seus territórios demarcados ou não. Sem os meios de (re)produção (biofisicoantropossocial), essenciais as organizações e modos de vida dos povos indígenas, essas populações perderão sua autonomia, ficando vulneráveis e expostas a violações de direitos, como: o trabalho análogo a escravidão, violência no campo, êxodo rural, pobreza, deslocamento compulsório da população indígena para as periferias urbanas, entre outros.

ISTOÉ: A implementação do Marco Temporal pode causar conflitos em locais “pacificados”?

Jolemia Cristina Nascimento das Chagas: A implementação do “Marco temporal” possibilitará a remoção forçada de grupos indígenas de seus territórios, já demarcados. Além disso, prevê a reivindicação do Estado sobre as Terras Indígenas, caso seja constatado “alteração dos traços culturais” do povo que ocupa essas terras. Em casos no qual a união considerar o território indígena de interesse público, permitirá a retirada dos povos indígenas de suas áreas de usufruto. Atualmente, vários povos lutam contra invasões de seus territórios pelo garimpo e investidas do agronegócio. Ou seja, esta luta nunca cessou desde os tempos coloniais e o “marco temporal” é uma tentativa de apagar essa história de violência e usurpação da terra e dos bens comuns.

Esses conflitos têm causado a morte de muitos indígenas, adultos e crianças. Várias lideranças indígenas e ativistas sofrem ameaças e morrem em defesa dos territórios e dos direitos dos indígenas. O marco temporal acirra problemas relacionados à insegurança fundiária, uma vez que prevê a marginalização dos povos indígenas.

ISTOÉ: Quais são os riscos para a natureza e o solo em caso de implementação do Marco Temporal?

Jolemia Cristina Nascimento das Chagas: Os riscos do “marco temporal” são imensuráveis e não afetam apenas os povos indígenas, mas os ecossistemas sob a proteção dos povos indígenas e a natureza como um todo.

O “marco temporal” pode intensificar a construção de grandes empreendimentos e atividades altamente predatórias por meio de concessões em territórios indígenas. Dentre eles, podemos citar desastres ambientais a curto, médio e longo prazo que podem decorrer por meio da implementação desses empreendimentos. As barragens, por exemplo, provocam inundações de extensas áreas, ecossistemas e comunidades. Levando a morte de várias espécies vegetais e animais submersos pela água. Além de forçar o deslocamento das populações tradicionais e povos indígenas de seus territórios.

O rompimento de barragens oriundos de atividades de mineração, ameaçam as populações e os ecossistemas, sujeitos a crimes ambientais
irreparáveis como a poluição de rios, ecossistemas e morte de pessoas e animais pelos rejeitos produzidos neste tipo de empreendimento.
As hidrelétricas alteram os ciclos naturais de rios, dinâmicas ambientais como agricultura nas várzeas que podem ser impactadas, além de interferir nos ciclos de reprodução da vida aquática e comunidades humanas.

Se aprovado, o PL490 prevê a liberação do garimpo em Terras Indígenas, atividade que causa a poluição do solo e da água, causando a morte de vários indígenas por contaminação de mercúrio. Além disso, a atividade garimpeira coopta indígenas para desenvolver trabalho análogos a escravidão, prostituição de crianças e jovens em regiões onde a atividade garimpeira ocorre.

A não demarcação de T. I abre concessões para grileiros e latifundiários que especulam grandes extensão de terra, destinando-as para atividades que causam mudanças no uso do solo, convertendo-os por meio de atividades nocivas como o desmatamento, abertura de pasto para pecuária e monocultivos.

Com a PL 490 em vigor, vários territórios indígenas, demarcados ou não, estarão sujeitos a atividades predatórias como as queimadas e o desmatamento. Os impactos dessas ações provocam perda de floresta e da biodiversidade. Além disso, o desmatamento e as queimadas, colocam em risco as nascentes de rios, lagos e igarapés.

As queimadas são responsáveis pela emissão de gases de efeito estufa na atmosfera. Seu acúmulo, juntamente com outros gases de efeito estufa em excesso, contribui com o aquecimento global. O aquecimento global causa a elevação da temperatura na terra, se intensificado, interfere nos padrões climáticos, acarretando eventos extremos como tsunamis, tornados, furacões, tempestades, inundações e tempestades tropicais.

Sabe-se que as florestas tropicais exercem funções que regulam o clima e a temperatura do planeta terra. Segundo os cientistas, atividades predatórias podem levar a Floresta Amazônica a atingir um ponto de não retorno, caso medidas urgentes não sejam tomadas frente à priorização do desenvolvimento econômico em detrimento das florestas e dos povos que nela vivem. Vale ressaltar que grande parte das áreas conservadas estão em territórios ocupados tradicionalmente por indígenas.

Nesse sentido, o marco temporal é um cheque em branco que a Câmara de Deputados, o Congresso e o STF estão decidindo assinar, colocando indígenas e não indígenas na mesma condição.

ISTOÉ: O PL beneficia apenas o grande agronegócio ou também pode favorecer a agricultura familiar?

Jolemia Cristina Nascimento das Chagas: O PL visa beneficiar o agronegócio, expõe territórios de usufruto coletivos para apropriação privada, aumentando a especulação e a grilagem de terras públicas para o desenvolvimento de atividades em grande escala, como a produção de monocultivos e abertura de pasto para a pecuária. Intensificará a concentração de terra e renda nas mãos de poucos, exaurindo recursos ambientais em nome do desenvolvimento econômico e produção de commodities.

Nesse sentido, garantir a demarcação das terras indígenas favorece a agricultura praticada pelos povos indígenas, esses povos cultivam a diversidade e seus modos de interação com o ambiente possibilitam a perpetuação e evolução de diversas espécies importantes para a segurança alimentar e nutricional.

ISTOÉ: A bancada ruralista está interessada no Marco Temporal por conta das terras. Há outras alternativas que possam ser colocadas em prática para evitar a sua implementação?

Jolemia Cristina Nascimento das Chagas: Sim. Demarcar as terras indígenas é garantir a proteção desses territórios. É o mínimo de reparação histórica para com os povos originários. Criar mecanismos legais para impedir mecanismos que ferem a CF1988 e ofusque debates mais urgentes e necessários para evoluirmos como um país potencialmente distinto em governança e gestão de seus patrimônios. Que respeita e resguarda sua constituição e a democracia.

O fato de estarmos ainda hoje discutindo sobre o “marco temporal”, revela uma necessidade de olharmos para a nossa história, conscientes das condições ao qual o povo brasileiro foi e é submetido. Buscarmos compreender a tessitura social e seus mecanismos de produção de desigualdades são primordiais. A partir disso, poderemos traçar alternativas necessárias e urgentes para desenvolver um país autônomo, diverso e potencialmente produtivo, sem que para isso, seja necessário abrir mão de seu povo.

ISTOÉ: Com a Cúpula da Amazônia, algumas organizações indígenas esperavam que o evento ajudasse a enfraquecer a tese do Marco Temporal. A senhora acredita que isso realmente aconteceu? A pressão internacional em cima desse tema pode ter alguma influência prática?

Jolemia Cristina Nascimento das Chagas: A cúpula da Amazônia, assim como os diálogos amazônicos que a precederam, foi uma oportunidade ímpar para a sociedade civil manifestar seu repúdio ao “marco temporal” junto ao governo brasileiro e repercutir a “Declaração de Belém” internacionalmente, manifestando a necessidade de apoio de organismos internacionais frente à violação da CF1988 e direitos dos povos indígenas, o qual representa o “marco temporal”.

Considerada superficial por entidades e especialistas a “Declaração de Belém”, documento entregue aos oito países membros da Organização do Tratado de Cooperação da Amazônia (OTCA), contemplou a importância de proteger os territórios indígenas e os direitos humanos na região amazônica. No entanto, a pauta sobre o “marco temporal” e outras demandas do movimento indígena, se dissolveram entre as demais pautas levantadas durante a Cúpula. Dentre elas, a bioeconomia, a exploração dos combustíveis fósseis, mudanças climáticas e o desenvolvimento sustentável.

Lideranças indígenas foram recebidas por ministros e reivindicaram os compromissos assumidos pelo presidente Lula junto aos povos indígenas. O evento Cúpula da Amazônia, foi uma oportunidade única, na qual os movimentos sociais demonstraram sua força de mobilização. Enquanto isso, a inconstitucionalidade do “marco temporal” e direitos dos povos indígenas seguem tramitando no Senado e no STF. Caso seja aprovado, a aplicação do “marco temporal” representará um retrocesso histórico.

Relembre o trâmite legal do marco temporal

  • O marco temporal passou a ser debatido no Legislativo após uma ação individual de Santa Catarina, na qual o governo reivindicava um trecho da terra indígena Ibirama-La Klãnõ habitada pelos povos Xokleng, Kaingang e Guarani;
  • A disputa pela reintegração da terra chegou ao STF em 2019, que ainda discute o caso;
  • Com base nessa ação, houve a apresentação do PL 490 em que propõe que a terras indígenas sejam demarcadas por meio de lei aprovada pelo Legislativo;
  • O texto do marco temporal é considerado um retrocesso porque fere a cláusula pétrea da Constituição Federal de 1988 que diz, em seu artigo 231, que “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”, além de retirar de Executivo a competência sobre a demarcação dessas terras.