A mãe de Alice, a instrutora de ioga Adriana, contabiliza 23 anos de uso ininterrupto, com pausas apenas durante as duas gestações. Ela não pretende ter mais filhos, mas também não quer fazer laqueadura como sua mãe, Alice. Resta-lhe, então, seguir usando pílula até a menopausa. “Sempre me dei bem com esse anticoncepcional, ele funciona direitinho. Exceto nas duas vezes em que me esqueci de tomar e engravidei”, brinca.

Dona Doralice, 85 anos, nem chegou a experimentar a pílula. Já tinha 37 anos e cinco filhos quando o invento do cientista americano Gregory Pincus (leia quadro na pág. 82) desembarcou em terras brasileiras, em 1961. A matriarca da família Vieira de Moraes, no entanto, é só elogios ao contraceptivo. “Ele mudou a vida da mulher para melhor”, sentencia. Alicinha, como chama a filha de 63 anos, foi uma das pioneiras no uso da pílula quando, aos 15 anos, saiu do médico com a prescrição do medicamento para aliviar suas cólicas menstruais. “Não tomei nem dois meses, pois morria de vergonha de ir à farmácia comprar.” Quando voltou a usar, quase dez anos depois, já casada, não se adaptou. “Eu passava muito mal, tinha fortes dores de cabeça e inchaço.”

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Alice é um retrato bem acabado da primeira geração que tomou pílula: as mulheres nascidas nas décadas de 40 e 50. Muitas não se adaptaram e adotaram métodos como camisinha, tabelinha ou o Dispositivo Intra Uterino (DIU). Quando tinham o número desejado de filhos, faziam a laqueadura. Embora a maioria das brasileiras que tomavam pílula fossem donas de casa cujo único objetivo era ter menos filhos que suas mães, essa geração ficou conhecida como a precursora da revolução sexual. Afinal, um pequeno e barulhento grupo de mulheres de todo o mundo que reivindicava o direito de exercer sua sexualidade livremente desde a década de 50 pôde, finalmente, fazê-lo. Não resta dúvida de que o grito angustiado das feministas das primeiras décadas do século XX impulsionou a criação da pílula.

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A historiadora Joana Maria Pedro, coordenadora do departamento de história da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), realizou um estudo durante quatro anos sobre o uso da pílula entre mulheres nascidas nos anos 40 e 50. Ela comparou a chamada “geração pílula” com a anterior, das nascidas nos anos 20 e 30. Joana conta que o movimento da primeira geração não foi tão recatado quanto se supõe, sem contar as feministas, obviamente. “Era vergonhoso para as solteiras, claro, mas não para as casadas. Nem mesmo para as católicas, que muitas vezes até recebiam o apoio dos padres de suas paróquias para fazer o controle da natalidade”, afirma. Vale lembrar que o Vaticano demorou muito a se posicionar. Só se pronunciou oficialmente em 1968, durante o pontificado de Paulo VI, com a encíclica Humanae Vitae, , que condenou taxativamente o uso do método. Mas, a essa altura, 12 milhões de mulheres já faziam uso do contraceptivo no mundo.

A segunda geração ficou caracterizada por mulheres que utilizavam a pílula para postergar a maternidade até ascender na carreira. Também são aquelas que iniciaram a vida sexual com o fantasma da Aids rondando suas descobertas e desejos. A liberdade sexual conquistada nas décadas anteriores nunca mais seria como antes. Corria o ano de 1986 quando a professora de yoga Adriana perdeu sua virgindade. “Era tudo muito confuso”, lembra. “A gente ouvia dos médicos que tinha que usar a pílula para evitar gravidez e camisinha para não se infectar com o HIV. Pareciam coisas separadas, que não deveriam acontecer simultaneamente”, recorda. Para a geração dela, planejamento familiar era uma das questões mais importantes. Já o matrimônio nos moldes “até que a morte os separe” não tinha o mesmo peso de outrora. Adriana ainda não chegou aos 40 e está em seu terceiro casamento. Com certezas não tão definitivas, e muito mais flexível, essa geração nascida nos anos 60 e 70 não foi muito adepta da laqueadura. Métodos irreversíveis não combinavam mais com vidas tão dinâmicas.

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VANGUARDA
Os laboratórios estão com várias frentes de pesquisa: pílula natural,
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Foi nos anos 80 que a pílula se consolidou em definitivo no País. De acordo com a historiadora Mary Del Priore, uma das maiores especialistas do Brasil em questões femininas, os exemplos de famílias pequenas das telenovelas somados à democratização do método fizeram com que a natalidade começasse a cair vertiginosamente nessa época. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 1960 a média de filhos por mulher era 6,3. Em 1980, caiu para 4,4. Hoje, é 1,95. Por outro lado, a participação da mulher no mercado de trabalho subiu de 28,8% nos anos 70 para 45% atualmente.

Nos últimos 20 anos, a pílula mudou muito. Liberdade sexual e planejamento familiar viraram ponto pacífico para as mulheres da terceira geração, como a estudante Aline. O que passou a importar foi garantir saúde e bem-estar. Além da função número 1, evitar uma gravidez indesejada, os comprimidos da terceira geração também ajudam a cuidar da pele, do cabelo, evitam cólicas, buscam atenuar os incômodos da TPM e não provocam tantos efeitos colaterais. São várias utilidades em alguns microgramas. Foi ao longo da última década que surgiram novidades como o anel vaginal, o adesivo e o implante. Perfeitos para quem ainda sente dificuldades em usar o remédio por via oral.

Mesmo diante de todos os avanços, e com exemplos de mulheres na terceira idade saudáveis após anos de uso da pílula, as jovens ainda não estabeleceram uma relação de confiança ilimitada com o método. Além do medo da infertilidade pelo uso contínuo, existe o receio de que provoque câncer de ovário e mama. Os especialistas garantem que até hoje nada foi provado nesse sentido. Ao que tudo indica, é bem o contrário. Um estudo feito pela Universidade de Aberdeen, na Inglaterra, com 46 mil mulheres ao longo de 40 anos mostrou que as que usam pílula são menos propensas a morrer prematuramente de câncer ou problemas cardíacos. Há ainda os temores antigos como o de engordar, ter espinhas e enxaquecas, entre outros. Nesse aspecto, os médicos ponderam que existem muitos tipos de pílula e que cada mulher deve achar a sua ideal.

A pílula anticoncepcional chega à meia-idade evoluindo e se transformando, assim como as mulheres. Ainda há muitas experiências, mudanças e aperfeiçoamentos a serem feitos para que ela fique cada vez mais confortável para quem a usa e sustentável para o meio ambiente. Mas o gene da revolução e da liberdade impresso em cada cartela desse contraceptivo deve seguir intacto. Afinal, depois dele, o mundo nunca mais foi o mesmo. Ficou bem melhor.
Colaborou Patrícia Diguê

TROCANDO EM MIÚDOS
Um raio X do uso do anticoncepcional no Brasil e no mundo
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Fontes: Instituto Guttmacher, Febrasgo, IBGE, Fundação Carlos Chagas, Unifesp