Nem o mais fervoroso católico imaginaria que, sob os escombros de uma Cúria corroída por escândalos de corrupção e pedofilia e enfraquecida por um pontífice renunciante, erigiria um líder capaz de reconstruir com extrema habilidade e coragem a Igreja Católica. Mais do que isso, um protagonista no cenário político mundial que, entre outras façanhas recentes, conduziu a reaproximação de Cuba e Estados Unidos, anunciada em dezembro. Papa Francisco, 78 anos, tem sido uma lufada de renovação e austeridade na alquebrada instituição romana. Em 19 meses de pontificado, o carismático argentino, primeiro latino-americano a assumir a frente da religião mais poderosa do Ocidente, já produziu e indicou mudanças significativas em sua instituição e não se furta de criticá-la abertamente – na segunda-feira 22, afirmou que a Santa Sé sofria de “15 doenças graves, entre elas, Alzheimer espiritual”. Mas, quando questionados sobre o gesto mais contundente deste movimentado pontificado até o momento, vaticanistas não deixam dúvidas e apontam o Sínodo das Famílias, que reuniu bispos e cardeais do mundo inteiro em outubro de 2014 no Vaticano e deve ser concluído em outubro de 2015. Na primeira fase desse encontro, amparados pelo discurso seguro de Francisco, empedernidos cardeais discutiram temas considerados tabus em pleno século XXI, como a acolhida de católicos em segunda união e cristãos gays nas paróquias. A prévia da reunião já indicou que há mudanças em curso.

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Acenos concretos de tolerância e solidariedade foram dirigidos, por exemplo,  aos casais de católicos em segunda união que são impedidos de comungar nas celebrações e circunscritos a pastorais temáticas.  Também foi estendida a mão para os milhares de casais gays que se escondem em suas comunidades religiosas, atormentados por versículos bíblicos que, de acordo com a interpretação vigente, repudiam sua orientação sexual. Mas isso não quer dizer que, a partir de outubro de 2015, os católicos passem a assistir a casamentos homossexuais ou divorciados sejam vistos confessando e comungando. Por mais que a Igreja Católica esteja  caminhando num ritmo mais acelerado com Francisco, sua engrenagem continua no vagar da Idade Média. “Em 2015 nenhuma norma irá mudar”, afirma o professor Francisco Borba, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “Até porque não daria tempo, com o sínodo sendo concluído em outubro.” Para Borba, o mais significativo não é a mudança de lei, mas de perspectiva, pois essa discussão sobre a família, os gays e os divorciados transforma a maneira como essas pessoas se sentirão aceitas em suas comunidades. “A Igreja não é o Estado, lá as normas não são o mais importante”, diz. O fato é que depois dos repetidos pronunciamentos do papa, que entre outras coisas disse que há várias formas de se amar, o olhar do católico sobre a nova conformação das famílias e das relações amorosas já foi transformado irremediavelmente.

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EMBATE
A primeira edição do sínodo, em outubro de 2014: forças conservadores
tentaram impedir o avanço das discussões

Para o vaticanista americano John Allen, o sínodo 2015 será um avanço, mas para isso terá muitas trocas de participantes, promovidas pelo próprio Francisco. Ele acredita que as forças conservadoras, lideradas pelo cardeal americano Raymond Burke (EUA), que impediram o avanço das discussões em outubro de 2014, serão enfraquecidas. E não duvida que a corrente favorável à comunhão para os divorciados
e recasados, liderada pelo alemão Walter Kasper, prevaleça. “Por mais puro que esse momento tenha sido, ele pode empalidecer-se em comparação com os desafios de manter a Igreja unida na medida em que as coisas avançam”, diz Allen. Se tem alguém preparado para a missão, ele é Jorge Mario Bergoglio.

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Fotos: AFP PHOTO – ALBERTO PIZZOLI, Alessandra Tarantino