SOLUÇÃO Silmara Casadei: “é preciso uma harmonização do conhecimento” (Crédito: GABRIEL REIS)

A péssima situação do ensino médio no Brasil não pode cair na conta de Jair Bolsonaro — ele é a ruindade e a ineficiência em pessoa, matou escolas, faculdades e a cultura, mas a paulatina degradação educacional já vem de diversas gestões anteriores. Uma fala sua, no entanto, ao definir na semana passada de forma absurda e tosca a caoticidade social, política e econômica do País, serve também para retratar a chamada reforma no currículo do ensino médio, que entra em vigor no ano que vem, embora já haja colégios que a estejam aplicando: “nada está tão ruim que não possa piorar”. A reforma em questão inverte toda a lógica pedagógica com a qual alunos e professores estão acostumados a lidar, uma vez que deixa de existir a obrigatoriedade de todos eles cursarem ou ensinarem as mesmas disciplinas ao longo de três anos. A novidade, em termos de matérias, são as disciplinas chamadas “itinerários formativos”. Elas se dividem em quatro áreas do conhecimento: matemática e suas tecnologias, linguagens e suas tecnologias, ciências da natureza e suas tecnologias e ciências humanas e sociais aplicadas.

Matemática e português são as únicas, de fato, obrigatórias: queira ou não, o aluno tem de cursar e o professor tem de ensinar. Os “itinerários formativos” são rotativos, e o estudante os escolhe de acordo com o seu próprio gosto. Parece confuso? Não só parece, como verdadeiramente é. Mas tem outro ponto que, se à primeira vista mostra-se positivo para o aprendizado, ao mesmo tempo embute reestruturações que nem sempre as escolas estão em condições de fazê-las, ainda que estejam elas no topo do ranking das instituições de ensino. Serve de exemplo o aumento da carga horária. A mudança prevê mil e quatrocentas horas anuais (atualmente são oitocentas). Ocorre, porém, que quanto maior for o período de tempo que o aluno passar na escola, “maior será a necessidade de contratar professores e expandir fisicamente o colégio”, diz Gregório Grisa, doutor em Educação e professor do Instituto Federal do Rio Grande do Sul. “Não é produtivo deixar um aluno sete horas na mesma sala e com o mesmo professor”.

“A limitação do aprendizado tende a aumentar, e isso poderá prejudicar o aluno na vida adulta” Gregório Grisa, doutor em Educação

Aqueles que defendem totalmente a reforma alegam que o maior problema do ensino médio, que é a evasão escolar, seria resolvido com a mudança curricular. Esquecem, no entanto, que nó maior reside na educação básica, na infraestrutura e no investimento — falhas que até podem ser intensificadas. “É uma complexidade, um paradoxo com o qual o poder público terá de lidar”, diz Bruno Alvarez, coordenador pedagógico do ensino médio do Colégio Pentágono, em São Paulo. Ou seja: nenhuma reforma curricular irá trazer ganhos estruturais, e o fato é que as instituições de ensino seguirão carentes de professores e recursos financeiros — e, se colégios de elite se queixam disso, pode-se imaginar a situação daqueles localizados em regiões menos favorecidas economicamente.

REALIDADE Para Bruno Alvarez, o Estado terá de lidar com a falta de infraestrutura e investimento: paradoxo (Crédito:GABRIEL REIS)

Com indiscutível base na linha de formação educacional construtivista, a reforma que virá é até sofisticada demais para um País onde muitas escolas, mesmo as cinco estrelas, têm dificuldades com o corpo docente. “O nível de limitação do ensino e do aprendizado tenderá a piorar”, explica Grisa. “Se o adolescente escolhe como ‘itinerário’, por exemplo, a área de humanidade, ele terá acesso muito restrito ao campo da ciência, e isso poderá prejudicá-lo na vida adulta”. Vale indagar: e se o estudante escolher como “itinerário” humanidade e ciência? Teoricamente, seria de ótima abrangência, mas volta-se ao eterno problema: não há instituição aparelhada para isso. E, ainda que houvesse, é inimaginável, no Brasil, que os estudantes do ensino médio possam se dar ao luxo de passar praticamente o dia inteiro e parte da noite no colégio, sem a necessidade de trabalhar — 16% deles fazem cursos noturnos porque trabalham. E a reforma, ao introduzir “uma certa sobra de horário” para um aprendizado relativamente profissionalizante com os “itinerários”, está criando, a rigor, pouca coisa. Os “itinerantes” são superficiais porque não há continuidade de um ano para o outro, e cada escola e cada professor possui autonomia para desenvolver a sua grade curricular. “Quando falamos de projeto de nação, é preciso uma harmonização do conhecimento em geral”, diz Silmara Casadei, diretora geral pedagógica do colégio paulista Porto Seguro.