Pelé faleceu no dia 29 de dezembro, aos 82 anos, pouco mais de um ano depois de ser diagnosticado com um tumor no cólon. Não faltaram homenagens ao Rei nos dias que sucederam o anúncio de sua morte, mas a despedida do maior jogador de futebol de todos os tempos foi ofuscada pela ausência de brasileiros campeões mundiais em seu velório. Apenas Mauro Silva, titular em 1994 e vice-presidente da Federação Paulista de Futebol (FPF), e Clodoaldo, do esquadrão de 1970, compareceram à Vila Belmiro.

As redes sociais serviram de palco para a cobrança de explicações sobre por que os ex-jogadores das conquistas mais recentes do Brasil – sem problemas de locomoção por causa da idade, como Zagallo, Jairzinho e Rivelino – não marcaram presença em Santos. O debate se estende ainda à discussão sobre idolatria no País e a dualidade Pelé, o mito, e Edson, o homem.

O velório de Pelé durou 24 horas, entre segunda e terça-feira da última semana. O eterno camisa 10 da seleção acumulava internações e apresentava uma saúde frágil ao longo do seu último ano de vida. Ele deu entrada no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, exatamente um mês antes de sua morte ser anunciada, passando todo o período na unidade.

Diferentemente de Afonsinho, ídolo do Botafogo que viajou oito horas de ônibus para se despedir do Rei, outros ex-jogadores optaram por usar as redes sociais para prestar condolências ou explicar a ausência. Cafu alegou que não conseguiu antecipar o voo. Rivaldo disse que o homenageou em vida. O ex-goleiro Marcos, mais ríspido, rebateu dizendo que ninguém foi no velório de seus pais.

A cobrança pela presença incondicional dos campeões mundiais no velório do Rei, baseada no argumento de que esta, sim, seria a principal forma de mostrar respeito, encontrou voz em nomes como Neto e Walter Casagrande, ganhando eco nas redes sociais, especialmente no Twitter. De fato, não há obrigação legal ou orientação da CBF para a ida de ex-atletas a velórios, mas a pressão surge pela maneira com a qual a sociedade construiu a sua relação com as redes sociais nas últimas duas décadas. É o que explica Issaaf Karhawi, jornalista e doutora em Ciências da Comunicação pela USP.

“Ou seja, a internet se infiltrou em nossas vidas e exigiu novos protocolos para momentos cotidianos. Por exemplo, é suficiente parabenizar alguém pelo aniversário só por mensagem de texto?”, diz a especialista. “No caso da morte de alguém, as mudanças quanto aos protocolos também aparecem. Não é só uma questão de certo e errado, mas uma percepção de que tudo se dá nas redes. A vida se organiza nela e, portanto, não há algo fora das redes.”

É inegável o espaço importante que as redes sociais ocupam na sociedade. Enquanto cerca de 230 mil pessoas compareceram ao velório de Pelé na Vila Belmiro, o Rei contou com uma presença massiva de pessoas comuns e celebridades prestando homenagens em plataformas digitais, diferentemente de Ayrton Senna, por exemplo. Porém, Issaaf pontua que a polêmica é amplificada por se tratar de um dos principais ídolos da história do Brasil.

“Há novos protocolos, mas nada está estabelecido e, por isso, essas mudanças acabaram resultando em muito desconforto e, igualmente, cobranças. As pessoas questionaram a ausência dos jogadores no velório do Pelé porque reconhecem a importância da presença física em momentos como esse. Porque há uma leitura de que o digital deve complementar os protocolos e não substituí-los integralmente”, explica.

PELÉ E RELAÇÃO DO BRASILEIRO COM OS SEUS ÍDOLOS

Durante a Copa do Mundo do Catar, Kaká deu a entender que o brasileiro não valoriza seus ídolos ao falar sobre Ronaldo Fenômeno, em uma entrevista para um canal britânico. “No Brasil, é só mais um gordo andando na rua”, afirmou. A máxima repetida pelo ex-melhor do mundo não chega a ser uma novidade e vai de encontro à comoção de torcedores que foram ao velório do Rei. Alguns esperaram até a madrugada para chegar perto do caixão e dar o último adeus.

Para Gerson de Moraes, historiador, filósofo e professor do curso de pós-graduação em Arte e História da Cultura da Universidade Mackenzie, Kaká foi infeliz em sua declaração e afirma que o Brasil possui um histórico de reverência aos seus ídolos, principalmente a figuras relacionadas ao entretenimento, música e esporte. O especialista comenta que a difusão dos meios de comunicação de massa ao longo do século 20 foi essencial na construção da imagem de ídolos nacionais. A Copa do Mundo de 1970, quando o Brasil conquistou o tri no México, foi a primeira a ser televisionada a cores.

“No Brasil, algumas figuras acumulam maior capital simbólico. O Pelé talvez seja o grande símbolo de uma transição dos meios de comunicação, passando por rádio, televisão e internet”, diz Moraes. “O Pelé gravou seus feitos na memória nacional de maneira muito contundente. Do ponto de vista midiático, ele é o símbolo deste processo.”

Moraes explica que a trajetória de Pelé enquanto ídolo transcende e o coloca em um status de ser inalcançável. Deste ponto de vista, o especialista define como “genial” a decisão do Rei ao longo da vida em separar o Pelé do Edson, e relembra as seguintes comparações com Diego Maradona, maior ídolo da história do futebol argentino, para diferenciar a maneira como cada País via os seus ídolos.

“Quando ele (Pelé) começou com essa distinção muita gente estranhou, achou arrogância, mas até nisso ele foi genial. Porque mostrava claramente que ele tinha uma dimensão do próprio tamanho. Porque o Edson é humano, limitado e temporal”, diz. “Diego e Maradona são um só. Um ídolo que mostra todas as suas falhas e mostra o quão humano é, causando uma identificação muito maior do que é. É um ídolo que ‘sangra’, que é alcançável. O Pelé é o herói perfeito. O Maradona é o personagem trágico perfeito”.

PELÉ X EDSON: A DUALIDADE QUE COLOCOU O REI EM XEQUE

Se Edson é o ser humano imperfeito, uma das maiores polêmicas do homem por trás da lenda foi o não reconhecimento de Sandra Regina, filha que teve fora de um de seus casamentos. Nascida em 1963, ela foi fruto de um relacionamento com Anísia Machado. Depois de uma longa batalha na Justiça, um exame de DNA confirmou a paternidade, em 1996. Apesar do reconhecimento legal, Edson jamais tratou Sandra Regina como filha e também não foi ao seu enterro, em 2006, quando ela morreu vítima de câncer.

A falta de proximidade com Sandra Regina foi uma mancha que Edson não conseguiu separar da imagem de Pelé. Após a sua morte, não foi difícil encontrar nas redes sociais quem não o compreendia como ídolo por causa deste momento, independentemente do que ele representou para o País. Ele nunca foi criticado abertamente por pares pelo episódio, tampouco isso explica a ausência de campeões em seu velório.

A antipatia ao caso da Sandra Regina reforça a necessidade que Edson encontrou de ter Pelé como alter ego – o apelido surgiu ainda na infância. Para Christian Dunker, professor de Psicanálise e Psicopatologia da USP, a cisão entre as duas faces do Rei tem respaldo na busca por separar a vida pública da privada.

“Temos que levar em consideração as circunstâncias. Ele é um homem que vem de uma cidade muito pequena (Três Corações-MG), onde todo mundo se conhece, e com 17 anos ganha uma Copa e excursiona com o Santos pelo mundo. Quando a pessoa se torna assim famosa, começa a ver efeitos que vão impactando todos ao seu redor. É uma maneira de se blindar também, certamente”, diz.

Dunker explica ainda que o Brasil possui um histórico na dificuldade em separar funções públicas e espaço privado. “Quando pensamos por exemplo de famílias que tratam funcionários domésticos como ‘parte da família’. Mas, de repente, não são mais. Essa confusão é muito própria nossa”, argumenta. “A gente viveu essa forma de sociedade onde as misturas são muito comuns. Se eu chamo alguém por um apelido né, é como se eu me sentisse assim mais familiar à pessoa”.

O professor comenta ainda que a dificuldade de separação das relações público e privada são facilmente percebidas no esporte. “Quando um time perde é comum ouvirmos que o time não teve ‘amor à camisa’. O amor é uma coisa que é mostrado na sua família, não no trabalho necessariamente.”