Ao encapsular a própria produção de artigos entre 2018 e 2022, o jornalista e escritor Ricardo Viveiros compôs em livro o que batizou de “Memórias de um Tempo Obscuro”. O termo “obscuro” remete imediatamente aos anos do governo Jair Bolsonaro, mas as memórias escritas por Viveiros vão além na obra. É certo que os principais ingredientes do compilado de 86 textos, publicados originalmente nos jornais Folha e Estado de S. Paulo, são o governo do presidente que antecedeu Lula e os ecos da pandemia no período. Entretanto, junto às análises político-sociais, Viveiros aproveita os espaços para esticar a abrangência e fugir da convidativa escrita monotemática do período.

Os textos aproveitam observações como as da pedagoga colombiana Yolanda Reyes, que determina a existência de “países que necessitam de tratamento psicológico” para desbravar, com etiqueta, temas espinhosos como o negacionismo científico durante a pandemia e citações nazistas, envolvendo o ex-capitão. Junto a artigos de observações políticas, Viveiros abre espaço para certas confissões empáticas, como as que faz ao analisar os números atuais de mortes no trânsito para relembrar as perdas de um filho e de uma neta em acidente quase duas décadas antes.

Recordações do país dos mortos
“Aprendi observando a vida que, mesmo diante da barbárie, não é necessário perder a delicadeza” Ricardo Viveiros, escritor

Com mais de 50 anos de jornalismo nas costas, coberturas de guerra e visitas a 114 países, o autor conta casos saborosos, como o encontro com o cientista duas vezes prêmio Nobel, Linus Pauling, na época em que o Brasil enfrentava ruidosos manifestantes contra a ciência. “Reli todos os artigos ao selecioná-los para o livro. E na distância dos fatos vividos, senti a sensação de que somos todos sobreviventes. Que soubemos ser fortes e enfrentar a obscuridade, o negacionismo da verdade, a violência, os preconceitos, a dissonância cognitiva, que vitimou milhares de pessoas. Foi muito gratificante perceber que, a cada momento desses anos sombrios, exerci meu ofício de provocar reflexões sobre fatos, não versões deles”, diz Viveiros sobre o balanço feito na compilação.

Os textos ainda tratam de temas que entraram de maneira definitiva na rotina dos brasileiros nos últimos anos, como a propagação de fake news, retrocessos políticos, a polarização dos “contra” versus os “a favor” e voto eletrônico versus voto impresso, em meio a citações que vão de Al Capone a Tolstói, de Gil a Caetano. O prefácio da obra é do escritor e cientista social José de Souza Martins, vencedor em três ocasiões do prêmio Jabuti, que antecipa que o autor “cumpre a função crítica própria desse tipo de literatura, que é a de estranhar. Somos um povo que não estranha o que é anômalo e bizarro, não estranha ser feito de bobo, ser usado, ser enganado, ser menosprezado.”.