Muito antes das séries dominarem os algoritmos de streaming, as novelas ocupavam o lugar mais nobre da televisão brasileira. Exportados para dezenas de países, nossos folhetins moldaram costumes, lançaram tendências, movimentaram bilhões em publicidade e colocaram o Brasil no centro da teledramaturgia mundial. Hoje, no entanto, o panorama é outro — e preocupante.
Nos últimos tempos, uma sequência de eventos evidenciou um momento delicado: a expressiva redução de oportunidades dessas produções, a desaceleração de projetos inéditos e a aposta crescente em roteiros estrangeiros. O alerta está aceso nas principais emissoras do país — Globo, SBT, Record e Band — e a razão central é o desempenho abaixo do esperado de produções recentes.
Na Globo, duas importantes apostas não conseguiram repetir o prestígio de outros tempos. Primeiro, Mania de Você, assinada pelo brilhante João Emanuel Carneiro — autor do fenômeno Avenida Brasil — estreou com grande expectativa, mas perdeu fôlego ao longo da sua exibição. Agora, o remake de Vale Tudo, um dos maiores ícones da dramaturgia nacional, enfrenta dificuldades para marcar altos índices de audiência. Apesar do texto primoroso de Manuela Dias, na última terça-feira, dia 22, a trama registrou 24 pontos em São Paulo — ainda distante da meta dos 30 pontos desejados nos bastidores do canal carioca.
Enquanto isso, a Record comemora. A emissora viu Força de Mulher, novela turca exibida no horário nobre, atingir seu recorde nesse mesmo dia, com picos de 11 pontos. A média de 9,5 pontos e 14% de share evidenciou o sucesso da história, empurrando o SBT para a faixa dos 3 pontos, exatamente num período em que exibiu parte da novela A Caverna Encantada.
O desempenho tem sido tão expressivo que fez a Record tomar a decisão de não apressar seu planejamento para a produção de outra obra nacional e anunciar que, após Apóstolo Paulo — prevista para entrar no ar no fim de maio — a substituta será outra novela turca: A Iludida.
O impacto, evidentemente, atinge em cheio o setor audiovisual. Com a redução das produções nacionais, o cenário fica ainda mais difícil para atores, diretores, roteiristas, figurinistas e técnicos. A engrenagem da criação para — e, com ela, toda a cadeia econômica e artística que sustenta o setor. Além disso, o modelo importado enfraquece uma das grandes virtudes do formato nacional: a integração entre narrativa e publicidade. Diferentemente das produções brasileiras, que permitem inserções de marca dentro da história, os folhetins estrangeiros se restringem aos intervalos comerciais — o que representa um retrocesso frente a estratégias mais modernas de branded content, coisa que a própria Globo, por exemplo, faz com excelência.
No SBT, o foco atual em novelas voltadas ao público infantojuvenil também passou a encontrar obstáculos. A Caverna Encantada, atualmente no ar, apresenta baixos índices e pouca repercussão no universo digital. A emissora, que construiu sua tradição como referência em novelas para a família, já considera uma reavaliação estratégica. O retorno de tramas voltadas ao público adulto está sendo discutido — e, nos bastidores, produtoras como a do diretor Boninho surgem como possíveis parceiras para essa nova fase. Iris Abravanel segue à frente do núcleo de dramaturgia da emissora da Anhanguera.
Na Band, o baque também foi expressivo. A interessante parceria com o streaming Max para exibir Beleza Fatal — superprodução com elenco estrelado — não atingiu os resultados esperados no IBOPE. Diante disso, a emissora teria até recuado nas tratativas de uma parceria para produzir Romaria, projeto encabeçado pelo experiente e respeitado diretor Jaime Monjardim.
O canal do Morumbi definiu sua próxima aposta para a faixa de novelas. Após o fim do folhetim assinado por Raphael Montes, a Band exibirá Café com Aroma de Mulher, trama colombiana que conquistou bons números na Netflix. Em meio a um cenário de cautela e buscando minimizar riscos, a emissora demonstra forte inclinação em retomar uma fórmula que parece mais segura: a exibição de produções turcas. Cabe lembrar que a Band foi pioneira ao exibir novelas da Turquia no horário nobre da TV aberta brasileira, com títulos como: Mil e Uma Noites (2014), Fatmagül – A Força do Amor (2015), Sila – Prisioneira do Amor (2015), Ezel (2016), Amor Proibido (2017) e Terra Amada (2018).
Há diversas possíveis explicações para o cenário atual. A saturação de formatos, o descompasso com os novos hábitos de consumo e o distanciamento entre o que se produz e o que o público deseja assistir são pontos relevantes. Em tempos de hiperconexão, tudo se tornou mais dinâmico — o espectador se cansa com mais facilidade, muda de preferência rapidamente, e quem está produzindo não pode demorar para reagir. A concorrência com os streamings, que oferecem tramas enxutas, ágeis e com linguagem atual, também influencia. E o avanço dos doramas — séries dramáticas asiáticas com episódios curtos e finais fechados — reforça esse novo comportamento de consumo.
Ainda assim, há um ponto crucial a ser destacado: a excelência técnica e criativa brasileira segue viva. O país ainda conta com um dos maiores polos de teledramaturgia do mundo, reúne inúmeros talentos e possui conhecimento e infraestrutura de alto nível. O que se faz necessário agora é ajustar a bússola.
A abertura a conteúdos estrangeiros pode, sim, ampliar horizontes culturais, mas não deve ser confundida com acomodação. Ceder de forma contínua o horário nobre da televisão brasileira a produções importadas é abrir mão de um território valioso, construído com muito esforço e com tantos talentos.
Na minha visão, o momento pede pesquisa, estudo e planejamento estratégico. É hora de ouvir o público, experimentar novas fórmulas, buscar inovação e reencontrar a essência que sempre nos distinguiu. A nossa televisão não precisa começar do zero — mas precisa, com urgência, reconectar-se com sua força. E talento para isso, não falta no nosso Brasil.