Convencidos de que o clássico Raízes do Brasil é um livro mutante, os organizadores da edição crítica que comemora os 80 anos da publicação original, Lilia Moritz Schwarcz e Pedro Meira Monteiro, decidiram reforçar essa característica, evitando o jargão acadêmico para tornar acessível a obra de Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) sem ignorar o critério rigoroso que determinou cada mudança no trabalho máximo do historiador, como provam as cinco primeiras edições analisadas pelos professores de Princeton. Na atual, além do texto original, estão as variantes, mais os textos para e sobre Raízes do Brasil, entre eles os prefácios do professor Antonio Candido que acompanharam as primeiras edições.

A edição crítica traz posfácios encomendados para a comemoração dos 80 anos, investigando a ressonância de uma obra que, desde seu lançamento, em 1936, pela editora José Olympio, provoca polêmica, a ponto de o próprio autor reconhecer a necessidade de ajustes, apagando, na segunda e terceira edições, “traços que poderiam identificá-lo como um antiliberal”, como observam os organizadores do livro.

O professor Antonio Candido foi o primeiro a detectar na obra um “fermento radical”. Como Buarque de Holanda, ele também morou na Alemanha e conviveu com as mais variadas e loucas teorias sociais e raciais – regressivas, na maioria das vezes. Uma das páginas que sofreram cortes, segundo os organizadores, mostra a supressão do nome do jurista e filósofo político alemão Carl Schmidt (1888-1985), que Buarque de Holanda chama de “ilustre professor de Direito Público da Universidade de Bonn”, cuja carreira foi maculada pela aproximação com os nazistas, sendo hoje lembrado como um inimigo da democracia liberal (apesar da influência que sua obra exerce sobre Agamben e Derrida).

“As mudanças nos textos, da primeira para a segunda edição, em 1948, variam desde a supressão do nome de Carl Schmidt, em função dos acontecimentos da Segunda Guerra, a um simples adjetivo, em que ele troca ‘mitologias liberais’ por ‘fraudulentas’”, observa o professor Pedro Meira Monteiro, um dos especialistas na obra de Sérgio Buarque de Holanda, que trabalha numa biografia do historiador.

Ele e Lilia Moritz Schwarcz, colegas na Universidade de Princeton, contaram na tarefa de organizar a edição crítica com a ajuda de dois orientandos, Maurício Acuña e Marcelo Diego, para reunir todo o material que evidenciasse as mudanças pelas quais o livro passou desde 1936 e que podem ser atestadas por uma simples consulta ao caderno de imagens anexado ao volume. Três décadas de releitura do próprio trabalho levaram Buarque de Holanda a aprimorar esse livro que forma, ao lado de Casa-Grande e Senzala (1933), de Gilberto Freyre, e Formação do Brasil Contemporâneo (1942), de Caio Prado Jr., o trio das obras incontornáveis sobre as origens e desenvolvimento da sociedade brasileira.

Para Lilia Schwarcz, Raízes do Brasil não nasceu clássico, mas “se transformou num clássico”. O que é bonito na história do livro, segundo a antropóloga e historiadora, diz respeito ao processo de mudança pela qual passou o autor ao promover todas essas releituras, confrontando a própria obra, a partir mesmo, observa, de sua disposição para discutir o ponto mais polêmico do livro, o conceito do “homem cordial”, que Buarque de Holanda desenvolve no quinto capítulo.

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O poeta Cassiano Ricardo (1895-1974) foi um dos que trombaram com o conceito do historiador, preferindo interpretar a cordialidade como bondade. “Buarque de Holanda admite, então, que é também bondade, além de inimizade e hierarquia, o que explica a aversão do brasileiro à impessoalidade do Estado, sempre buscando um padrão afetivo a seguir.” Em outras palavras, é um homem formado na tradição familiar, submisso às relações de simpatia e avesso a tudo o que é externo ao núcleo de parentes e amigos – a razão do compadrio onipresente na política nacional. “A exacerbação do poder pessoal vai virando a personificação do Estado, a política de caráter afetivo que tem de se sobrepor ao que é público, e nisso ele acertou na mosca”, argumenta Lilia Schwarcz.

“O livro foi escrito na aurora dos populismos na América Latina”, lembra a historiadora social, o que justifica suas críticas ao modelo do Estado forte e ao personalismo. “Ele defendia a necessidade de uma República urbana, industrial, e isso fica claro no terceiro capítulo, cujo título foi alterado por ele quatro vezes, de ‘O Passado Agrário’ para ‘Herança Rural’”, diz ela, contrapondo a visão futurista, urbana, de Buarque de Holanda a uma certa nostalgia da fazenda, uma melancolia indisfarçável, na obra de Gilberto Freyre.

A expressão “homem cordial’ não foi criada por Sérgio Buarque de Holanda. Sua origem é controvertida, mas Pedro Meira Monteiro atribui a paternidade ao poeta nicaraguense Rubén Dario (1867-1916), autor de Azul (1888), marco zero da modernidade hispano-americana. “Dario, que pensava numa outra América, usa a expressão em referência aos poderosos da Argentina em 1898.” Antenado com a literatura, Buarque de Holanda foi também leitor de Flaubert, lembra o organizador. E isso explica sua obsessão pela palavra exata.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.


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