Ganha vulto espantoso os crimes cometidos em nome da raça nesta quadra da nossa história, no desenrolar sinuoso do século 21, caso não coloquemos em dúvida que fomos teletransportados para tempos pretéritos, não pelo metaverso, mas pela incúria maldosa bolsonarista.

O filósofo Gilles Deleuze costumava dizer que “a raça é motivo de delírio em quase todo o tempo e lugar”. Podemos dizer que o delírio criminoso do momento tem nome: “teoria da substituição” ou a “grande substituição” – ideia racista que ganha materialidade cotidiana em atos de extrema violência. A “teoria da substituição” foi criada em 2010 por Renaud Camus, autor francês que revelou ter medo de um genocídio de brancos (sic) em virtude do crescimento populacional de imigrantes na Europa que se quer branca. Os portais de extrema direita dos EUA vêm amplificando a preconceituosa ideia supremacista de Camus e alertando para o perigo de brancos serem substituídos por outras etnias e raças nos espaços do poder. Temem que deles sejam confiscados bens simbólicos e materiais, muitos desses bens fruto do saque histórico dos territórios negros e indígenas, e que a boa rotina do mundo seja regida por outras matrizes e civilizações. Bradam que é preciso reagir a esse avanço que vem se mostrando irrefreável.

Os portais de extrema direita dos EUA vêm amplificando a preconceituosa ideia supremacista e alertando para o perigo de brancos serem substituídos por outras etnias e raças nos espaços do poder

Embora Camus tente se desconectar dos ataques crescentes de supremacistas brancos nos EUA e em outros países, muitos desses crimes recorrem à teoria do autor francês para justificar o ódio e a perseguição a grupos raciais não hegemônicos. O massacre numa sinagoga em Poway, Califórnia, em 2019, o atentado, no mesmo ano, que matou cinquenta e um fiéis em duas mesquitas na Nova Zelândia e o recente ataque ao supermercado de Buffalo, em Nova Yorque neste mês de maio. Payton S. Gendron, autor dos tiros em Buffalo, escreveu cento e oitenta páginas carregadas com tintas supremacistas nas quais insistia que os americanos brancos podem ser substituídos por pessoas não brancas. Gendron seguiu a receita comumente adotada pelos extremistas recorrendo ao Sol Negro ou Sonnerads – insígnia nazista utilizada fartamente em sites e outras plataformas de natureza racista imprimindo ao massacre uma simbologia que ganha lastro universal para ameaçar, perseguir e violentar grupos raciais vulneráveis. Esses episódios, que a cada dia deixam de ser eventos isolados, revelam os conectivos que os mantêm ligados e vão delineando ponto a ponto a face assombrosa da política contemporânea, pautada pela alterofobia e pela inimizade. Essa sim é a face identitarista do mundo e que devemos combater veementemente!