Ilustração: Lézio Junior

“Naquele momento eu não estava com ela. Se estivesse, teria chamado a polícia na hora” Maria Klien Machado, mãe de Ava, 4 anos, hostilizada na piscina do hotel Fasano Boa Vista (Crédito:©Arquivo Pessoal)
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Cena 1. A pequena Ava, de 4 anos, é hostilizada ao entrar na piscina do luxuoso hotel Fasano Boa Vista, em um condomínio de alto padrão em Porto Feliz, interior de São Paulo. Recebida por crianças da sua idade com as frases “Sai daqui” e “Sai da água”, o que seria um banho de piscina em um dia de sol se tornou uma experiência traumática. Cena 2. A advogada Valéria Lucia dos Santos foi retirada à força da sala de audiência nas dependências do fórum do Juizado Especial Civil de Duque de Caixas, no Rio de Janeiro, em um episódio com vários componentes racistas. Por ordem da juíza, Valéria foi pega com truculência e algemada pela polícia enquanto reivindicava seu direito de exercer a profissão. Cena 3. O turista americano Anthony Barrow foi preso em flagrante no Rio de Janeiro após ter insultado funcinários do Museu do Amanhã. Ele havia solicitado atendimento em inglês. Diante da monitora bilíngue e negra, afirmou que não falaria com ela. Preso por um PM também negro, recusou-se a fornecer sua identificação. Estava hospedado em um hotel perto do antigo Cais do Valongo, um dos maiores pontos de desembarque de escravos das Américas.

As três cenas descritas acima ocorreram nas últimas semanas e compõem um retrato dramático da discriminação racial que persiste de forma covarde no Brasil. Passados 130 anos desde que a escravidão foi abolida, o racismo continua arraigado na sociedade brasileira, formada por uma população majoritariamente miscigenada. Ao longo de um dia qualquer, negros brasileiros serão atacados e discriminados por seus concidadãos, em uma rotina de desprezo, exclusão e violência centenários que parece não conhecer limites, apesar dos esforços educacionais, campanhas de conscientização e mudanças na lei que tornaram crime qualquer tipo de intolerância quanto à cor, etnia, credo, origem, gênero, condição social e idade.

Nascida no Malawi, Ava foi adotada pelo casal Maria Klien e Arthur Pinheiro Machado. Eles estavam no condomínio a qual o hotel está integrado a convite de uma amiga que possui residência no local. Indignada, uma amiga do casal manteve a criança na piscina enquanto outros se retiravam. “Naquele momento eu não estava com ela. Se estivesse, teria chamado a polícia na hora”, disse Maria Klien Machado. A babá de Ava, Luzinete Leandro, 41, também negra, diz ter ouvido outras mães comentarem: “Essa gente tem muitas doenças” e “As micoses são difíceis de tratar”.

A advogada Valéria Lucia dos Santos foi retirada à força de audiência no fórum de Duque de Caxias (Crédito:Fernando Frazão/Agência Brasil)

A incapacidade de aceitar uma pessoa que tem outra cor de pele compartilhando seu ambiente social elitista é um deplorável traço cultural brasileiro. Ela pode se manifestar de forma velada ou explícita, como nas falas do general da reserva Hamilton Mourão (PRTB), candidato a vice-presidente na chapa de Jair Bolsonaro (PSL). Ele já afirmou que o subdesenvolvimento do Brasil é causado pela “cultura de privilégio dos ibéricos, a indolência dos indígenas e a malandragem dos africanos”. Ao tentar se explicar, foi mais racista ainda: “Nada contra, mas a malandragem é oriunda do africano. Então, esse é o nosso cadinho cultural”. Uma frase que revela o quanto a mentalidade escravocrata se mantém viva no País. Ela também aflora nas redes sociais, como demonstram os ataques a frequentes a figuras públicas como a menina Titi, adotada pelo casal de atores Bruno Gagliasso e Giovanna Ewbank, e a jornalista da TV Globo Maria Júlia Coutinho, a Maju. Ambas foram alvo de injúria racial. Nas agressões a Maju, quatro pessoas foram indiciadas.

CRIME INAFIANÇÁVEL

Pela legislação brasileira, racismo é um crime inafiançável. Mas raramente quem o pratica sofre as devidas consequências penais. Talvez por isso, em vez de retroceder, a violência racial vem crescendo. De acordo com a Secretaria de Segurança do Estado de São Paulo (SSP-SP), entre janeiro e maio deste ano houve um aumento de 30% nos boletins de ocorrência por racismo e injúria racial na comparação com o mesmo período do ano passado. Foram 151 registros em 2017 e 195 este ano. No estado do Rio, o aumento entre 2016 e 2017 foi de 47%. Parte da explicação diz respeito ao crescimento da escolarização da população afrodescendente, segundo afirma o filósofo e teólogo frei David Santos, diretor da Educafro, entidade que fornece bolsas de estudo para estudantes negros. “O racismo não aumentou. O povo negro é que está crescendo em consciência e está denunciando aquilo que sempre aconteceu, mas antes não tinha coragem de denunciar”, diz. Outros dados endossam esse raciocínio. Segundo o último Censo do Ensino Superior, elaborado em 2016 pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), o percentual de pretos e pardos matriculados subiu para 30%. Em 2011, o índice era de 11%.

No futebol, esporte nacional, os casos de ofensas raciais são crescentes. Ficou bem conhecido o caso da torcedora branca que ofendeu o goleiro Aranha, do Santos, em um jogo contra o Grêmio, em Porto Alegre, em 2014. No ano seguinte, quando Aranha cobrou do Santos direitos trabalhistas, foi ofendido novamente em rede social — só que pela torcida de seu time. “Racismo entre negros mostra a eficácia dessa ideologia”, diz Nelson Inocêncio, do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade de Brasília (UnB). Dados do Observatório da Discriminação Racial indicam que em 2018, até abril, foram registradas oito ocorrências de racismo e injúria racial nas competições sul-americanas. Desde 2014, foram 20 casos, a maior parte na Argentina — lá, torcedores do Independiente imitaram macacos diante de torcedores do Flamengo, na final da Copa Sul-Americana do ano passado,

Um estudo das Nações Unidas derrubou o que restava do mito da democracia racial brasileira ao considerar a questão do preconceito contra negros e pardos “estrutural e institucionalizada”. Representando 55% da população, eles possuem uma taxa de analfabetismo três vezes maior (30,7% contra 11%), são vítimas de mais de 70% dos homicídios, ganham R$ 1,2 mil a menos ao mês, em média, vivem 8 anos menos e representam por volta de 20% do PIB. “Racismo é conseqüência da ignorância”, diz Nelson Inocêncio. Para o cientista social Jessé Souza, autor de “Subcidadania Brasileira”, nossas mazelas são fruto da escravidão: “A desigualdade, o prazer sádico na humilhação diante dos mais frágeis, o esquecimento e o abandono da maior parte da população. Esse é o grande problema brasileiro”. A julgar pelos casos das últimas semanas, um problema que está longe de ser solucionado.