Mais do que um caso isolado, o ataque aos filhos dos atores Giovanna Ewbank e Bruno Gagliasso no restaurante Clássico Beach Club, na Costa de Caparica, sábado, 30, mostra uma fratura na sociedade portuguesa, que pouco combate o preconceito racial. Os pequenos Titi e Bless, além de uma família de africanos que estava no estabelecimento, foram ofendidos por uma mulher chamada Maria Adélia Freire de Andrade, de 57 anos, que os chamou de “pretos imundos” e disse para voltarem para a África. O incidente expôs vícios que só vieram à tona e ganharam repercussão internacional porque se trata de um casal de celebridades com influência e capacidade financeira para levar a agressão para a Justiça. A mulher acabou detida não pelas manifestações de preconceito, mas porque também ofendeu policiais. Na delegacia, foi solta. Se as crianças não tivessem pais brancos, como admitiu a própria Giovanna, dificilmente teriam sido defendidas com o mesmo vigor. De qualquer forma, o conflito acendeu um debate público que costuma ser escamoteado pelos portugueses que preferem não discutir a escravidão e nem o racismo embutido na colonização e praticado no país até hoje. Agora que o ministério público local decidiu entrar firme no caso, é possível que se veja inclusive um aperfeiçoamento da legislação para que se torne menos permissiva.

O presidente Marcelo Rebelo de Souza divulgou uma nota condenando atos racistas e xenófobos e disse que eles devem ser “devidamente punidos, seja qual for a vítima”. Giovanna e Bruno prestaram queixa contra Maria Adélia e vão levar o caso até o fim. Mas há dúvidas sobre as reais consequências que a agressora deverá sofrer. A lei local não tipifica o crime de injúria racial, ao contrário do que acontece no Brasil. Lá, a difamação e a injúria não prevêem qualquer agravante de ódio por questões étnicas. Embora tenham sido os inventores da escravidão moderna, os portugueses preferem não refletir sobre o assunto e só em setembro do ano passado apresentaram um projeto no parlamento para melhorar a situação atual. Apesar das lacunas na legislação, a advogada Mariana Zonenschein, que atua em processos de Giovanna e Bruno, acredita que o caso envolvendo Titi e Bless pode, de fato, ser punido criminalmente. “As ofensas proferidas em local público, repleto de gente, se enquadram à previsão legal do artigo 240 do Código Penal”, diz Mariana. O artigo diz que “ameaçar pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, com intenção de incitar à discriminação racial é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos”.

BRASILEIROS Barbara Thomaz foi vítima de agressão no Uber, em Lisboa (Crédito:Divulgação)

“Não acho que o português seja inconsciente, mas acho que na sociedade portuguesa não há um debate, como há no Brasil ou nos Estados Unidos, e a discussão racial que existe é muito limitada em termos de opinião pública”, diz o historiador Leandro Junqueira, pesquisador sobre racismo da Universidade do Minho, em Braga, que está de mudança para Angola onde dará aulas para alunos do ensino fundamental. “A minha observação como professor de história é que existe um silêncio sobre esse passado colonial, sobre o racismo. O português médio quer esquecer o assunto e o Estado não incentiva o debate público. “Para Junqueira, se percebe na sociedade uma vergonha da escravidão, como se o passado devesse ser esquecido e não tivesse nenhuma relação com o presente”, afirma. Um estudo feito pela pesquisadora Marta Araújo, do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, mostrou que os “livros didáticos do país escondem o racismo do colonialismo português e naturalizam a escravatura”. A escravidão não ocupa mais de três páginas nos livros didáticos adotados pelas crianças portuguesas, sendo tratada de forma vaga e superficial.

REAÇÃO Diante dos ataques, Giovanna Ewbank reagiu com vigor e deu um tapa na mulher. Bruno Gagliasso tratou de chamar a polícia.Abaixo, Maria Adélia é encaminhada à delegacia por desacato a autoridade, mas foi solta. O Ministério Público português investiga o caso (Crédito:Divulgação)

O problema do racismo e da xenofobia é grave em Portugal. Entre 2017 e 2020, manifestações de aversão a brasileiros subiram mais de cinco vezes, saltando de 18 para 96, segundo a Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial (CICDR). Isso representa um aumento de 433%. No final de julho, a brasileira Barbara Thomaz e duas amigas foram vítimas de xenofobia de um motorista da Uber em Lisboa. Elas saíam de um jantar e, quando o motorista se deparou com as três mulheres, passou a agir de forma violenta, inclusive dirigindo em alta velocidade, colocando em risco a vida delas. Em relatos nas redes sociais, Bárbara ressaltou que ela e as amigas estavam consternadas com o ocorrido, uma vez que a segurança delas, a nacionalidade e o gênero foram atacados de forma gratuita. Como diz o presidente Rebelo de Sousa, “há, infelizmente, setores racistas e xenófobos entre nós, mas não se pode, nem deve generalizar, pois o comportamento da sociedade portuguesa é, em regra, respeitador dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana”. É hora, porém, de diminuir a voz desses setores desviantes.

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