Marcado para acontecer em março de 2020, fatídico mês em que foi decretada mundialmente a pandemia de Covid-19, que só no Brasil matou mais de 660 mil pessoas, o show do grupo Racionais MC’s no Espaço das Américas, casa de espetáculos na zona oeste de São Paulo (SP), finalmente foi realizado nesta sexta-feira (22).

Pouco mais de dois anos após a data original, os “quatro pretos mais perigosos do Brasil”, como costumam ser chamados, promoveram uma verdadeira celebração do rap nacional em uma noite quente de outono. Não apenas porque, coincidentemente, o evento foi remarcado para o dia do aniversário de 52 anos do rapper Mano Brown, principal nome dos Racionais, mas também porque além do setlist revisitar a obra do grupo de rap mais importante do país, na estrada já há mais de 30 anos, o espetáculo ainda contou com shows de abertura de dois outros grandes nomes da cena, de gerações diferentes, mas igualmente influenciadas pelo impacto causado pelos Racionais, Dexter (509-E) e Rincon Sapiência.

rapper Dexter (509-E)
Dexter no palco do Espaço das Américas (Crédito:Rafael Strabelli @rafaelstrabelli/Espaço das Américas @espacodasamericas)

O MC do 509-E, grupo gerado na antiga Casa de Detenção de São Paulo, o presídio do Carandiru, deu início aos trabalhos aquecendo a plateia que cantava empolgada cada um dos seus versos, tanto de sua carreira solo quanto do duo formado com o rapper Afro X. Mesmo com uma apresentação curta, de cerca de 30 minutos, o Oitavo Anjo, como é conhecido o cantor, mostrou a que veio e por que também é considerado um dos maiores ícones do rap no país. O encerramento com a clássica “Saudades Mil”, do 509-E, cantada em uníssono por milhares de pessoas, foi um dos pontos altos da noite.

Na sequência, Rincon Sapiência, subiu ao palco e manteve o clima quente do evento. Com uma pegada mais dançante, o rapper da nova geração traz um som mais influenciado por batidas africanas que o rap mais clássico, que possui influências maiores da música negra estadunidense. Rincon possui um flow (o ritmo em que canta o rapper) diferenciado e muito próprio, com um andamento mais acelerado do trap (subgênero do rap), que se encaixa como uma luva na mesma frequência das batidas que remetem às percussões de ritmos africanos. Com um show empolgante, o MC manteve a energia lá em cima para o que viria depois, os reis da noite.

Rincon Sapiência no Espaço das Américas
Rincon Sapiência no Espaço das Américas (Crédito:Rafael Strabelli @rafaelstrabelli/Espaço das Américas @espacodasamericas)

Já era madrugada de sábado (23) quando KL Jay, Ice Blue, Edi Rock e Mano Brown, acompanhados de uma grande banda, subiram ao palco do Espaço das Américas. Se já nos shows de abertura a plateia havia se entregado de corpo e alma ao que estava vendo, era mais do que certo que quando o mais influente grupo de rap do país entrasse em cena, a conexão seria de um nível ainda mais elevado, e não foi por menos.

Logo de cara, os Racionais chegaram entoando dois hinos de seu álbum mais aclamado, o “Sobrevivendo no Inferno” (1997), “Capítulo 4, Versículo 3” e “Diário de um Detento”. É difícil calcular o tamanho da importância desse disco, que no fim dos anos 1990 derrubou as barreiras que mantinham às margens da música brasileira o rap, que até então era preconceituosamente ligado apenas à criminalidade.

O sucesso de “Sobrevivendo no Inferno” só aumentou mais de duas décadas após seu lançamento, e não apenas o transformou em um livro homônimo editado pela Companhia das Letras, como o colocou como uma das obras obrigatórias no vestibular da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), dada a rica narrativa de cada uma das letras do grupo, em especial pelas composições de Mano Brown que abriram o espetáculo.

Mano Brown, líder dos Racionais MC's
Mano Brown, líder dos Racionais MC’s (Crédito:Rafael Strabelli @rafaelstrabelli/Espaço das Américas @espacodasamericas)

Em pouco mais de 1h40 de apresentação, os Racionais MC’s enfileiraram clássicos de várias fases do grupo. E se as canções de “Sobrevivendo no Inferno” foram as responsáveis por levar ao mainstream e às periferias de norte a sul do país o grupo de rap formado por integrantes das zonas norte e sul de São Paulo, outras do também clássico álbum “Nada Como um Dia Após o Outro Dia” (2002) eternizaram os Racionais no panteão das lendas da música brasileira.

Se alguém em 2022 ainda duvidar do impacto do grupo na música nacional, é só testemunhar a conexão das letras dos Racionais com a população, especialmente a negra e periférica, do país. Canções como “Negro Drama”, “Vida Loka I e II”, “Eu Sou 157” e “Jesus Chorou”, todas do “Nada Como um Dia…” são cantadas de ponta a ponta, em uníssono, por pessoas de diversas regiões do país, que enxergam a si próprios representados na arte como nenhum outro gênero musical foi capaz de fazer. Ainda em 2022, o grupo deve ganhar um documentário da Netflix sobre sua história.

Em muitos discursos e entrevistas, é comum que rappers, inclusive do próprio Racionais, reforcem o poder salvador do rap, e se “Sobrevivendo no Inferno” foi um álbum responsável por segurar a mão de tanta gente à margem da sociedade nas periferias, “Nada Como um Dia…” resgatou a dignidade de todo um povo excluído que não apenas não se via representado na cultura mainstream, como deu a ele uma perspectiva de futuro. “É necessário sempre acreditar que o sonho é possível, que o céu é o limite e você, truta, é imbatível”, diz Edi Rock em “A Vida é Desafio”.

O que se viu no Espaço das Américas nesse fim de semana de um carnaval retardado pela pandemia foi um grande exemplo da conexão que o rap tem com o público. E se ainda há gente com uma visão tacanha e elitista de que o gênero está diretamente ligado à criminalidade, o que será que essas pessoas pensariam ao ver grupos de amigos abraçados, cantando e dançando juntos, quase como crianças, músicas como “Mágico de Oz” e “A Fórmula Mágica da Paz”, que fecharam o set.

Os mais de dois anos de espera por essa apresentação causados pela pandemia deram uma camada extra à ideia de “sobrevivência” imortalizada nas letras dos Racionais. E ainda que o grupo não lance um álbum novo já há oito anos —o último foi “Cores & Valores” (2014)—, está mais do que claro que “os quatro pretos mais perigosos do país” têm uma missão e não vão parar. E como diz Mano Brown, que ganhou até um “Parabéns pra você” da plateia, sua palavra “vale um tiro” e ele tem muita munição.