Temos certeza de que esta irá encontrá-lo com saúde. Faz 125 anos que você nasceu da imaginação daquele irlandês, o Abraham “Bram” Stoker, um escritor que decidiu contar sua história no estilo epistolar, muito na moda na era vitoriana. E foi assim, por meio de cartas escritas por seus personagens, que ficamos sabendo de fatos e sentimentos. Esperto, o Stoker. Ele fisgava leitores com idas e vindas no tempo e espaço, mantendo o suspense e provocando aquele medo que alguém meta os dentes no nosso pescoço quando chegam as sombras da noite. Você, Drácula, nem precisaria aparecer mesmo, para provocar essa sensação de terror à luz de velas no século XIX. Jonathan Harker, o advogado inglês que viaja a trabalho para o Castelo de Drácula, nos Montes Cárpatos, relata a sua caça. Sabemos também que você perseguiu a sonâmbula Lucy Westenra, pelo que conta a amiga Mina Murray, noiva de Jon. Também temos o diário de bordo do capitão do macabro navio que transportaria você e seus caixões para a Inglaterra. E nos envolvemos roendo as unhas.

O que não sabemos: se o Stoker se “inspirou” no verdadeiro Conde Drácula, o sanguinário Vlad III da Valáquia, torturador de invasores de suas terras na Transilvânia. Ou se teve contato com o tratado escrito pelo demonólogo Augustine Calmet em 1791, sobre os boatos sobre vampiros dos Bálcãs. Ou se leu o conto The Vampyre, do médico John William Polidori, de 1819. Fato é que foi o Bram Stoker que apresentou você ao mundo, com o livro que leva seu nome, Drácula, lançado em 1897. Mudamos de século e o cinema se deixou seduzir por você. Quem o representou muito bem foi o ator Bella Lugosi, sabe, no fi lme Drácula de 1931. Capa preta, cabelo puxado em V, olhos estatelados, dentes pontiagudos e sangue escorrendo da boca, você virou estrela. Depois, outro ator, o Christopher Lee, se consagrou com O Vampiro da Noite, de 1958, produção do estúdio inglês Hammer Film Productions.

Também conhecemos alguns de seus “primos”, como o Nosferatu (Vampiro na língua romena), pelo fi lme gótico dirigido por F.W. Murnau ainda em 1922. E o Lestat, aquele entrevistado para o livro da Anne Rice em 1976. Ah, antes de ser Lestat, o vampiro dessa escritora americana se chamava Louis de Pointe du Lac. E quando o romance dela pulou para o cinema em 1994, esses seus parentes encarnaram em Tom Cruise e Brad Pitt, no filme Entrevista com o Vampiro. Você até já tinha se tornado humanamente mais melancólico, veja só, na direção de Francis Ford Coppola, que fez questão de dar o nome de seu criador ao fi lme que dirigiu em 1992: Drácula de Bram Stoker.

Verdade é que você se tornou tão forte que repassou sua imortalidade para o nosso imaginário. Pode “viver morrendo” eternamente nas mãos de caçadores de vampiros, mas temos certeza de que renasce. Até andou ganhando contornos mais eróticos ou passando por histórias divertidas, como na paródia de outros de seus parentes, dirigida pelo Roman Polanski em 1967. Sim, se chamou A Dança dos Vampiros. Seu castelo, não sei se você viu, foi transformado no Hotel Transilvânia em desenho de 2012. E a tevê? Tirou de você a inspiração de séries como A Família Addams, lançada em 1994 (ah, a BBC apresentou o Drácula dela agora em 2020…).

Débora Worthington (Crédito:Divulgação)
Divulgação

Mas depois de tanta mordida de sua parte, há algumas penitências. Você também foi vampirizado: participa de Dia das Bruxas; de festas em bufês infantis com correria entre escorregadores, bexigas e brigadeiros; virou releitura em capa de caderno, camiseta, canequinha. Edwin Perez, roteirista e professor na área de audivisual do SENAC, lembra que o triângulo de elementos de sua história – imortalidade, sexualidade e medo — é muito poderoso para manter você como personagem vivo por tantos anos. Dos elementos da sociedade patriarcal da sua época, o século XIX, sua história foi se transformando. Do drama à comédia, chegou mesmo a um vampiro que se apaixona como na série adolescente Crepúsculo, iniciada em 2008. Sim, Drácula. Parabéns a você e muitos anos de vida!

HOMENAGEM Gary
Oldman e Winona
Ryder, no Drácula de
Bram Stoker, de 1992 (Crédito:Divulgação)

Contra a vampirização, consciência

Se faz parte do inconsciente coletivo, o personagem Drácula também se revela em simbolismos importantes para reflexão. A analista junguiana Débora Worthington observa que até um termo foi criado para os nossos tempos de consumo desenfreado:
vampirização.

“O Drácula é um gentleman, fala inglês, alemão… Quando vai à Inglaterra, sabe da etiqueta, consegue se misturar. Mas ao mesmo tira sangue das vítimas. Para viver, precisa dos outros. E precisa do consentimento delas para se aproximar. Para isso, hipnotiza, fala o que querem ouvir, as coloca em situação passiva. Em uma analogia com o nosso mundo de hoje, pode ser o mercado, por exemplo, que precisa dos consumidores para sobreviver e para isso os seduz.” E também de pessoas que agem assim, que sugam, e responsabilizam as vítimas, como Deborah observa. No caso do caçador de vampiros, a cruz é sua defesa. “Ela é a árvore da vida, no simbolismo; o eixo do mundo. Integra terra, fogo, água e ar, além de elementos opostos. E seu centro é a inteligência, a consciência. Assim, quando ele estende a cruz contra o mal, na verdade está usando a consciência para não ser vampirizado, para não se deixar levar.”