Luminar do romance policial brasileiro marcou e influenciou uma geração de escritores, como Marçal Aquino e Tony Bellotto. Ele faria cem anos neste domingo.O escritor Marçal Aquino havia sido convidado para dar um depoimento sobre a obra de Rubem Fonseca no México, onde o autor de O Caso Morel (1973), Feliz Ano Novo (1975) e A Grande Arte (1983) receberia o Prêmio Juan Rulfo, um dos mais importantes da América Latina, em 2003. No pavilhão da Feira Internacional do Livro de Guadalajara, Fonseca viu um enorme banner com sua foto, leu a citação escrita nele ("Eu sou um homem consumido pelo presente", em espanhol) e comentou com o amigo: "Muito bonito. Só que eu nunca escrevi essa frase".
Na mesma hora, Aquino rebateu: "Escreveu, sim". "Onde?", Fonseca ficou curioso. "Está no conto O Inimigo", desvendou o mistério. "Você não pode saber mais do que eu", insistiu, incrédulo. "A solução foi recorrer ao estande da editora Alfaguara, que havia lançado no México um volume com os melhores contos de Rubem Fonseca. E lá estava, no conto O Inimigo, a frase renegada", recorda Aquino. "A partir daquele dia, me converteu numa espécie de consultor da própria obra. De vez em quando, me escrevia perguntando em qual livro estava determinada cena."
Aos 67 anos, Marçal Aquino é considerado, pelo crítico Karl Erik Schollhammer, doutor em semiótica pela Universidade Aarhus, da Dinamarca, e professor do departamento de letras da PUC-Rio, um dos "herdeiros literários" de Rubem Fonseca. É autor, entre outros títulos, de O Amor e Outros Objetos Pontiagudos (1999), Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios (2005) e Baixo Esplendor (2021) e, entre outros roteiros, de Os Matadores (1997), O Invasor (2001) e O Cheiro do Ralo (2006).
Em 2023, Aquino foi convidado para dar uma palestra sobre seu mentor no ciclo Cadeira 41, da Academia Brasileira de Letras. "O primeiro livro dele que me caiu nas mãos foi Os Prisioneiros. Me impressionou a força da linguagem, a temática e, sobretudo, a capacidade de traduzir a realidade à nossa volta de maneira tão urgente e contundente", afirma. "Boa parte dos livros que saíam na década de 70, quando o Brasil vivia sob uma ditadura militar, eram alegóricos. Falavam da realidade por elipses. Rubem Fonseca ia direto ao nervo exposto".
"Você é Rubem Fonseca?"
Se Os Prisioneiros (1963) foi o primeiro livro a cair nas mãos de Marçal Aquino, O Caso Morel (1973) foi o primeiro a ser devorado por Patrícia Melo. À época, ela tinha apenas 15 anos. "Era uma leitora voraz de romances policiais e acreditava, na minha inocência e ignorância, que não era possível ter uma literatura cinematográfica como, por exemplo, a de Dashiell Hammett e Raymond Chandler, escrita em português", relata a escritora, hoje com 62. "Toda a minha geração foi muitíssimo influenciada por Rubem Fonseca. Ele criou uma escola de literatura urbana".
Patrícia Melo conheceu Rubem Fonseca no começo dos anos 90 em um jantar oferecido por Suzana Amaral. A cineasta estava produzindo um filme baseado no romance O Caso Morel e convidou a autora do recém-lançado Acqua Toffana (1994) para assinar o roteiro. "Durante o jantar, brinquei com Rubem: 'Vou te fazer um favor. Vou matar aquele dentista que o seu cobrador deixou escapar'". O dentista a que Patrícia se referia era o Dr. Carvalho, do conto O Cobrador (1979). E o assassino dele, Máiquel, do romance O Matador (1995), de sua autoria.
Os dois voltaram a trabalhar juntos outras vezes. Em 2001, Patrícia adaptou o romance Bufo & Spallanzani (1996) para o cinema e, dois anos depois, Rubem escreveu o roteiro de O Homem do Ano, versão de O Matador (1995). "Embora tivesse muitos amigos, era esquivo com fãs que o abordavam nas ruas. Uma vez, ele estava no cinema, na sessão das duas, de um cinema do Leblon, e o fotógrafo Toni Vanzolini o reconheceu por debaixo de seu indefectível boné. 'Você é o Rubem Fonseca?', perguntou Toni. 'Depende', respondeu Rubem. Esse era o jeito dele", relata.
Noutra ocasião, saiu de casa e sofreu uma queda de pressão. Para não cair, se apoiou numa árvore. Em seguida, sentou-se perto do meio fio. Pôs, então, as duas mãos na cabeça e ficou descansando por uns minutos. Dali a pouco, passa uma mulher e pergunta: "Você não é o Rubem Fonseca?". "Final da história: ela chegou em casa e deve ter dito: 'Encontrei o Rubem Fonseca bêbado, na sarjeta'", contou, certa vez, ao amigo Zuenir Ventura, de 93 anos.
Avesso a entrevistas
Rubem Fonseca era tão arredio que, no dia 9 de novembro de 1989, o jornalista Luiz Carlos Azenha, então repórter da extinta TV Manchete, não reconheceu o escritor, avesso a entrevistas e fotografias, ao entrevistá-lo durante a cobertura da queda do Muro de Berlim, na Alemanha. No crédito da reportagem, saiu apenas: "José Fonseca". "Meu pai era um homem discreto. Sempre foi. Não era uma figura conhecida. Queria ser reconhecido por sua obra", explica a escritora e pesquisadora Bia Corrêa do Lago, a primogênita do escritor.
Ao todo, Rubem Fonseca escreveu 32 livros: 19 de contos, 12 romances e um de crônicas – O Romance Morreu (2007). Desses, Vera Follain, doutora em letras pela PUC-Rio e autora do livro Os Crimes do Texto – Rubem Fonseca e a Ficção Contemporânea (2003), destaca Feliz Ano Novo: "Não só pelo impacto que causou devido à abordagem crua da violência urbana como pelo fato de ter sido proibido pela ditadura militar na década de 70".
Já Deonísio da Silva, doutor em letras pela USP e autor do volume Rubem Fonseca – Proibido e Consagrado (1996), aponta O Caso Morel como um dos mais importantes. "Como o auge de Rubem Fonseca coincide com uma queda acentuada na qualidade do ensino médio e universitário brasileiros, suponho que a maioria dos leitores não está preparada para ler e entender esse romance. Vai preferir outros títulos, como Agosto".
Peripécias em Berlim
Em comemoração ao centenário de Rubem Fonseca, no próximo dia 11, a editora Nova Fronteira lança, a partir de junho, o box Todos os Contos + 2, que traz os inéditos Natal e Arinda. Os dois foram escritos em 1958 e descobertos em 2020 na casa do autor, no Leblon. Até o final do ano, a editora Capivara lança uma fotobiografia, com fotos raras ao lado da cantora Carmen Miranda, em 1954, ou do escritor Gabriel García Márquez, no final dos anos 70, entre outros. Segundo Bia Corrêa do Lago, o pai gostava de ler poesia ("Sua favorita era Florbela Espanca!"), fazer exercícios ("Guardava halteres debaixo da cama") e trabalhar com música ("Ouvia de tudo: samba, ópera, rock…").
O caçula José Henrique Fonseca, irmão de Bia e do fotógrafo Zeca Fonseca, também pretende homenagear o pai. Diretor de Agosto (1993), Mandrake (2005) e Lúcia McCartney (2016), inspirados na obra de Rubem Fonseca, o cineasta está rodando o documentário José. Ainda sem previsão de estreia, vai trazer depoimentos de amigos como o cineasta Walter Salles, diretor de A Grande Arte (1991), e imagens de cidades como Berlim, onde Rubem morou cinco meses como bolsista do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD) – dois em 1985 e três em 1989.
Na crônica Reminiscências de Berlim (2007), Fonseca lembra das vezes em que cruzou a fronteira com obras de autores nacionais, como Clarice Lispector, Érico Veríssimo e Guimarães Rosa, contrabandeados para um professor alemão, Erhard Engler. "Os livros enviados pelo correio não chegavam às suas mãos. Na fronteira, por portador, eram apreendidos", escreve. "Como era inverno no dia em que levei a primeira remessa, vesti um largo casacão e enfiei os livros em torno da barriga e das costas. Não podiam ser vistos, a não ser que eu tirasse o sobretudo".
Na cena do crime
Além dos três filhos, todos do casamento com a tradutora Théa Maud Komel, Rubem Fonseca deixou incontáveis discípulos. Um deles é o carioca Raphael Montes, de 34 anos. Seu primeiro contato com a obra do mestre foi por meio do conto O Anjo das Marquises (1998). Na opinião do autor de Dias Perfeitos (2014), Jantar Secreto (2016) e Uma Família Feliz (2024), o personagem Paulo Mendes, o Mandrake, tem, apesar de advogado, um quê de detetive como Sam Spade ou Philip Marlowe, criados por Hammett e Chandler. "Um noir à brasileira", definiu Montes, em 2020.
Outro pupilo é o músico e escritor paulista Tony Bellotto, de 64. O criador de Remo Bellini é o primeiro a admitir que seu detetive – protagonista de Bellini e a Esfinge (1995), Bellini e o Demônio (1997), Bellini e os Espíritos (2005) e Bellini e o Labirinto (2014) – deve muito a Mandrake. "Os contos de Lúcia McCartney mostraram que havia outra literatura para além dos livros que me sugeriam na escola. Não havia alívio nem consolo neles, e isso me fascinou. Decidi ser escritor por causa dele", recorda. "Me deu conselhos inesquecíveis: 'Um livro só não tem o direito de ser chato'".
Mineiro de Juiz de Fora, José Rubem Fonseca nasceu no dia 11 de maio de 1925. Formado em direito, entrou para a polícia em 1952. "O fato de ter sido delegado o colocou em um lugar privilegiado para constatar o crescimento da violência urbana", explica Sandra Reimão, doutora em comunicação e semiótica pela PUC-SP e autora de Literatura Policial Brasileira (2005). "Feliz Ano Novo foi censurado por enfocar a 'face obscura da sociedade' e tratar de temas sensíveis, como delinquência, latrocínio e homicídio".
Exonerado em 1958, estreou na literatura em 1963. Ganhou, entre outros prêmios, Jabuti (1969, 1983, 1996, 2002 e 2014), Camões (2003) e Machado de Assis (2015). "Inventou o policial brasileiro. Até então, nossos romances soavam como imitações canhestras. Pela primeira vez, um romance policial tinha 'cheiro de Brasil'", afirma o escritor Fernando Bonassi, autor da trilogia Luxúria (2015), Degeneração (2021) e Violência (2023). "A leitura de Feliz Ano Novo foi um espanto e uma revelação: era possível elevar à categoria de arte a nossa crônica policial".