Existem memórias que não se apagam. Há algumas, inclusive, que passam em nossas mentes como um filme, de tempos em tempo. A morte de Amy Winehouse faz parte dessas memórias em mim. Era julho de 2011, depois de chorar, me indignei. Afinal, como seria possível que aquela mulher, nitidamente doente, continuava em cima dos palcos? Como era possível que uma das maiores vozes dos últimos tempos não pudesse, nem quando estava pedindo socorro, silenciar?

Para quem acompanhava a carreira da cantora, não é difícil se lembrar de suas últimas imagens: magra, com os olhos caídos, em cima do palco. Esse fim derradeiro, já foi registrado e colocado à público em 2015, no documentário indicado ao Oscar intitulado Amy. Ali, é possível ter uma grande dimensão da figura de Mitchell Winehouse, pai da cantora.

Por ironia ou escolha própria de cegueira, Mitchell parecia não enxergar o pedido de socorro de Amy. Fazendo-a seguir carreira mesmo quando já não mais queria. Afundada em drogas e, obviamente, em problemas emocionais, Amy, por ordem do pai, seguia dando entrevistas e trabalhando incansavelmente. Ela era, afinal, a mina de ouro de Mitchell, não poderia parar e cuidar de si.

A Amy viveu, tornou-se uma das maiores cantoras do mundo e morreu por ganância. Se tivesse sobrevivido a intoxicação alcoólica que a matou, Amy teria largado a música, é o que diz o melhor amigo Tyler James, que acaba de lançar o livro “Minha Amy” (Editora Agir).

Depois de terminar a leitura, pude perceber que a minha indignação de 2011 tornou-se ainda mais concreta. Amy Winehouse não pôde escolher o trilho de sua vida. Para os que estavam ao seu redor, principalmente o pai, Mitchell, ela significava fortuna. Mitchell viveu e fez a filha viver esbanjando dinheiro e luxo. Sem jamais questionar se essa era mesmo a vida que Amy queria.

James acredita que não. Por isso, ao longo das trezentas e dezessete páginas, o melhor amigo da cantora tenta destruir a imagem de que Amy queria, sim, se matar. Ele retoma a narrativa de que ela jamais pode ter pleno poder de escolha.

Uma passagem do livro chama a atenção. Enquanto estava em uma clínica de reabilitação, Mitchell desabafou com James: “E se Amy nunca mais trabalhar? Nunca mais fizer turnês? E se ela nunca mais compuser outro álbum?” Mitchell chegou a proibir a compra de presuntos para a filha, usando a desculpa de que estava economizando gastos.

“O que você vai economizar em cinco pacotes de presunto quando você tem toda uma aldeia na folha de pagamentos? Amy poderia ter dinheiro suficiente para viver pelo resto dos dias se morasse no apartamentinho em Jeffrey’s Place e cuidasse da vida sozinha, em vez de passar cada dia de três, quatro anos pagando por dois seguranças em tempo integral e morando em casas insanamente luxuosas que ela nunca escolheu”, diz outro trecho do livro.

Amy sofreu por ser gigante e não ter tido a chance de cuidar de si, de terem resumido sua vida em valores. É justo que um dos maiores talentos da música ter sido vítima de sua própria grandiosidade?

Ao fim do livro, tive a certeza que, assim como a responsabilidade de Mitchell, de ter obrigado a filha a bancar sua vida de luxo quando ela seguia pedindo socorro, a sociedade, que não respeita a individualidade de astros e esquece que eles também são feitos e carne e osso – como bem disse Simone Biles ao desistir de competir nas Olimpíadas –, colabora para fins trágicos.

Uma sociedade que não enxerga a essência humana, acreditando que é possível alguém ser de ferro. Que lamenta a morte quando poderia ter salvado. Peço, novamente, licença a Tyler James e termino este texto com mais um trecho do livro que fala da Amy escondida atrás da fama, aquela que ninguém queria escutar: “Quando estava em um jatinho privado, tudo que Amy realmente queria era estar em um supermercado comprando o que ela ia cozinhar para o jantar”. Ela só queria a normalidade.