PROTESTO Aprovação de PEC que pode proibiraborto em casos de estupro gerou manifestações em mais de 30 cidades brasileiras (Crédito:Cris Faga)

Em meio ao trauma de ter sido estuprada pelo próprio namorado, a estudante Renata*, 21 anos, sofreu mais um baque. Descobriu estar grávida. Entrou em desespero ao imaginar que manteria um laço para toda a vida com o agressor. “Fiquei com medo de ter a criança e descontar tudo nela, tratá-la mal pelo que aconteceu comigo”, disse à ISTOÉ um dia antes de realizar o aborto. “Não quero ter um filho nessas circunstâncias.” Em um hospital de São Paulo equipado para realização do procedimento, ela conversou com uma assistente social, uma psicóloga e um médico. É um trabalho minucioso para ver se a história é verdadeira, se as datas batem. Se não existisse o amparo legal, diz, estaria desesperada: “Correria o risco de fazer nesses ‘açougues’ clandestinos ou de tomar remédio sozinha.” A decisão de interromper a gravidez foi amparada pela legislação brasileira, que permite a prática em caso de estupro, risco de vida à gestante ou anencefalia. O decreto que estabelece o direito é de 1940, mas, apesar de antigo, é ameaçado até hoje. Tramita na Câmara dos Deputados uma manobra para que o País recue quase oito décadas e proíba o aborto sob qualquer circunstância. A justificativa é de se estar agindo “pela vida”. “De quem? Da mulher é que não é”, questiona Thomaz Gollop, professor de Genética Médica da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do Grupo de Estudos sobre o Aborto (GEA).

“Punir a mulher”

O Projeto de Emenda à Constituição (PEC) 181, de 2015, foi criado para discutir a possibilidade de estender a licença maternidade das mães de bebês prematuros, aumentando o benefício de 120 para até 240 dias. Mas o relator do texto-base, Tadeu Mudalen (DEM-SP), inseriu uma proposta de alteração dos artigos 1º e 5º da Constituição Brasileira para incluir a expressão “desde a concepção” quando se tratar, respectivamente, da “dignidade da pessoa humana” e ao garantir “a inviolabilidade do direito à vida”. Para Gollop, “focar nesse ponto é punir a mulher”, uma vez que a discussão sobre quando começa a vida é interminável. “Não tem solução”, afirma o professor da USP. A justificativa dos propositores da mudança é a de seguir uma convenção da qual o Brasil é signatário, o Pacto de San José da Costa Rica, ratificado pelo Brasil em 1992. No capítulo II, o texto versa sobre pena de morte, e nesse espaço está a afirmação de que o direito de respeito à vida “deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção”. No âmbito jurídico, o tratado ficou conhecido justamente por estabelecer o veto à pena capital na América Latina.

Antes mesmo de aderir ao pacto, o Brasil já era signatário do CEDAW (sigla em inglês para o Comitê para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher), assinado em 1984. O tratado visa garantir os direitos das mulheres e estende a discussão do aborto solicitando ao País que revise a legislação criminal sobre o tema. Atualmente, a mulher que interrompe a gravidez ilegalmente pode receber pena de um a três anos de prisão. Para a promotora de Justiça de São Paulo e integrante do grupo de enfrentamento da violência doméstica Fabiana Dal’Mas Paes, a aprovação da PEC 181 faria com que o Brasil não apenas deixe de seguir as orientações como restringirá ainda mais o acesso à saúde. “Será que vamos chegar ao ponto de ver uma mulher correndo risco de vida em uma gravidez e, por cause dessa mudança na legislação, preferir que ela morra?”, questiona a promotora. “Esse tipo de alteração é ilegal do ponto de vista do ordenamento jurídico internacional. Além disso, não respeita a Constituição, que fala em dignidade da pessoa humana e acesso à saúde. ”

A escolha de Rebeca

Divulgação

Separada e mãe de dois filhos, Rebeca Mendes, 30 anos, engravidou após manter relações esporádicas com o ex-marido. Com uma rotina que concilia um trabalho temporário no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e o curso de Direito financiado pelo ProUni, ela entrou com um pedido pela autorização de aborto legal junto ao Supremo Tribunal Federal (STF). “Fico imaginando as possibilidades e, a longo prazo, se eu estivesse vivendo outra realidade, o mínimo diferente que fosse, eu não estaria escolhendo fazer um aborto”, afirma Rebeca em carta à ministra Rosa Weber, do STF.Ela diz que cogitou comprar um remédio por conta. Mas, pelos relatos que ouviu, desistiu, pelo medo de o procedimento não funcionar, acarretar má-formação ou o remédio causar hemorragia, acabar sendo levada para um hospital e, de lá, para uma delegacia. “Não quero ser presa, muito menos morrer.”

Cavalo de Tróia

Uma ideia bastante complexa, portanto, está no cerne da discussão sobre a PEC 181. Falar em “desde a concepção”, colocada no texto na surdina, é uma discussão que poderia passar despercebida. Mas, para críticos ao projeto, vai abrir um precedente perigoso. Por isso, a proposta ganhou o apelido de “cavalo de Troia”, em referência ao cavalo de madeira gigante que, segundo a mitologia grega, foi enviado de presente ao povo troiano — e dentro do qual se esconderam soldados que tomaram a nação rival de surpresa. Apoiadores da proposta afirmam que os direitos hoje garantidos por lei não serão alterados. Ainda assim, não cogitam retirar do texto-base a expressão “desde a concepção da vida”. A preocupação seria apenas barrar o avanço da legalização do aborto voluntário no Brasil. “Isso é uma mentira. Ao falar que se protege a vida ‘desde a concepção’, para transformar isso em uma proibição total é um passo fácil”, afirma Gollop. “É uma manobra tão desavergonhada que eles inseriram uma coisa que não tem nada a ver em um processo de emenda à Constituição que ia estender a licença maternidade.” Para a promotora Fabiana Paes, há uma queda de braço promovida por um grupo específico, a bancada evangélica, tentando provar que tem mais poder que os demais no assunto aborto. “Mas esse grupo não está calculando o quão maléficas são as consequências para a vida e para a saúde das mulheres”, afirma Fabiana.

Um dos levantamentos que serve de referência para o assunto, o trabalho “Serviços de Aborto Legal no Brasil – Um Estudo Nacional”, realizado em 2015, mostrou que dos quase 1.300 abortos legais realizados, 94% em decorrência de estupro. Anencefalia, permitida desde 2012 após decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), representou 4%; risco à vida da mulher, 1% – mesmo percentual atribuído a outras malformações graves. Não se pode diminuir a necessidade da existência de uma proteção legal que garanta a vida e a saúde da mulher mesmo nos casos em que a incidência é menor, uma vez que a sobrevida de feto anencéfalo é baixíssima e levar adiante a gravidez pode causar extrema dor e sofrimento ao casal. Mas como as situações de aborto decorrente de estupro são imensa maioria, é sobre elas que grande parte dos argumentos sobre a importância da manuntenção da legislação se debruça. “A violência sexual é amplamente apontada como condição traumática para a vida das mulheres, sendo precursora de sintomas de depressão, transtorno de estresse pós-traumático, ansiedade, aumento do uso de substâncias, disfunções sexuais e dores crônicas, entre outros”, afirma a psicóloga e doutora em saúde da mulher pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Carolina Leme Machado de Godoy. Segundo ela, apesar de a incidência de gravidez decorrente de estupro ser relativamente baixa — entre 1% e 6% dos casos — as consequências na vida das mulheres são sempre devastadoras. “A violência sexual está entre os episódios mais traumáticos na vida de uma pessoa”, afirma. “Engravidar de uma violência é um trauma a mais.”

Pela vida das mulheres 

Em estudo divulgado em 2015, Carolina Godoy relatou e analisou histórias de mulheres que passaram por essas situações. “Elas usavam simbolismos para descrever o que sentiam. Diziam, por exemplo, que a criança seria a imagem viva da violência que sofreram, que não conseguiriam olhar para o filho gerado sem lembrar do que aconteceu.” Em entrevista à ISTOÉ, a pesquisadora afirma que o argumento de seguir a gestação para depois doar a criança é insensível em relação ao cotidiano que a vítima de violência enfrentaria diariamente. “Se você pensar que uma mulher que sofre estupro não tem coragem de contar o que aconteceu nem para o marido, imagina aparecer grávida em todos os ciclos sociais”, aponta. Aos 12 anos, a paranaense Lúcia*, hoje com 35, foi obrigada a seguir uma gestação fruto de uma violência sexual cometida pelo marido da irmã. Grávida, foi colocada em uma espécie de asilo. No parto, a criança foi entregue à adoção. “Não tinha direito de decidir.” Ao pensar em reencontrar a filha, toda a história volta à mente, diz ser torturante demais lembrar de tudo que passou mesmo depois de mais de 20 anos. “Esse tipo de gravidez não é uma escolha”, afirma. “Acredito que interrompê-la, nessa situação, pode evitar muito sofrimento.”

BATE-BOCA Na comissão da Câmara, discussão entre contrários e favoráveis tomou conta da sessão da terça-feira 21 (Crédito: Pedro Ladeira)

Na segunda-feira 13, logo após a primeira aprovação da PEC 181 em uma comissão especial da Câmara dos Deputados no dia 8 de novembro, por 18 votos a 1 — o único contrário foi o da deputada Erika Kokay (PT- DF) — mulheres em todo o País se organizaram para protestar nas ruas de mais de 30 cidades brasileiras. Apenas em São Paulo, 10 mil pessoas foram à Avenida Paulista. Com gritos de ordem como “Legaliza, o corpo é nosso, é pela vida das mulheres”, e cartazes com dizeres sobre o direito de escolha, as manifestantes retomaram uma prática de protesto já estabelecida desde 2015, quando uma proposta do então deputado Eduardo Cunha, atualmente preso por três crimes na operação Lava Jato, instaurava uma série de mudanças no acesso ao aborto legal. Sonia Coelho, da Marcha Mundial das Mulheres e da Sempre Viva Organização Feminista, afirma que outras articulações estão em curso contra o projeto. “Estamos colhendo assinaturas para uma moção e há vários movimentos em Brasília articulando e pressionando deputados para que o texto não vá para votação”, diz. “As mulheres estão conscientes do retrocesso que isso significa pras vidas e o quanto isso nos coloca em um lugar de subordinação.”

“Não vamos entrar nesse tema sem ter muita clareza que essa questão não vai ser prejudicada de forma nenhuma”
Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara dos Deputados

Retrocesso

O assunto também entrou na pauta de celebridades. Atrizes, cantoras e modelos de diferentes gerações e que defendem publicamente o direito ao aborto usaram a influência que possuem junto a seus seguidores nas redes sociais para alertar quanto ao risco no caso da mudança na legislação. Entre as vozes mais ativas estão Letícia Sabatella, Camila Pitanga, Deborah Bloch, Bruna Linzmeyer, a cantora Ana Cañas e a ex-modelo Luiza Brunet, que já admitiu ter feito um abordo em 1979 e hoje defende a legalização.

A comissão ainda precisa votar mais uma vez o atual texto da PEC 181 para que, então, a proposta siga para o plenário da Câmara dos Deputados. A decisão estava marcada para terça-feira 21. Após muito bate-boca entre os parlamentares, a discussão foi interrompida e continuou na quarta-feira 22. Sem conclusão, foi novamente adiada. No plenário, a proposta precisará de 308 votos para se tornar pauta no Senado, onde primeiro será objeto de análise em uma comissão especial. Se houver modificação, volta para os deputados. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) já afirmou que, como está, a PEC não será aprovada. “Não vamos entrar nesse tema sem ter muita clareza que essa questão não vai ser prejudicada de forma nenhuma”, disse. Ou seja, a não ser que a expressão “desde a concepção” seja retirada do texto, segundo Maia, a votação não existirá.

Para a psicóloga Carolina Machado de Godoy, há grandes chances de o projeto não ir para frente. “Seria um retrocesso retirar direitos baseados em levantamentos científicos. Para se chegar à atual norma do aborto legal, foram analisados vários estudos e comparativos”, diz. “Vejo a situação mais como um alarme: temos sempre que ficar atentas. Ainda assim, é preocupante que exista essa proposta, pois significa que há pessoas que apóiam a ruptura de direitos.”

“Fui estuprada por um tio. Abortei pra não me suicidar”

“Estava em casa. Tinha que confirmar a matrícula de um curso que um tio meu também iria fazer. Fomos até o local e, na volta, ele parou em um loteamento. Mandou eu ficar calada, começou a me tocar, segurou meu braço e me mandou tirar a roupa. Dizia que eu estava gostando, que eu não ia esquecer. Dias depois, descobri que estava grávida. Fui a um hospital municipal, o médico aplicou um remédio e abortei. Correu tudo bem. Se não tivesse essa opção, tiraria minha vida. Não conseguiria conviver com o sofrimento de ter um filho de um estuprador e lembrar daquilo a vida toda. I. R., 20 anos, estudante

* Os nomes foram alterados a pedido das entrevistadas