Comemoraram-se na quarta-feira 28 quatro décadas da Lei da Anistia envolvendo a ditadura militar e seus opositores. Instaurado no País por um golpe de Estado em 1964, o regime já contava, então, com quinze anos de governo quando o seu quinto presidente da República, o general João Figueiredo, sancionou o decreto que extinguiu “punibilidade e condenações de adversários ideológicos, presos políticos, exilados e banidos”. Era o momento em que a ditadura, que amordaçara o Brasil, torturara e matara oponentes, dava claros sinais de débâcle. Caía de podre com as mãos sujas do sangue arrancado em pau de arara, de podre caía com as mãos sujas da terra cavada em covas clandestinas. Nesse quadro a anistia veio, no entanto, mais como concessão dos generais e nos moldes que eles queriam, menos como conquista da sociedade civil e daquilo que ela pleiteava — apesar de o movimento, que nos anos 1970 foi liderado pela ativista de direitos humanos Therezinha Zerbini, ir ganhando mais corpo a cada dia. Dessa estranha pactuação, dessa estranha (talvez inevitável) aceitação pela centro-esquerda de uma anistia outorgada pela extrema direita, herdou-se uma lei quasímuda, deformada na origem e que é um verdadeiro nó.
Do lado que lhe era contrário, a ditadura não anistiou aqueles que haviam “cometido crime de sangue”; do lado dos que lhe davam sustentação nos porões ou em órgãos oficiais da repressão, concedeu o benefício a torturadores e assassinos – dois pesos e duas medidas jamais vistos com tal descaramento no universo jurídico. Pelo “princípio legal da conexidade”, ganharam anistia “todos os agentes que combateram os opositores” da ditadura, mesmo valendo-se de bárbaros métodos. Uma “conexidade”, digamos, tão parcial que a própria Justiça Militar desconsiderou o texto e acabou libertando também os presos que tinham crime de morte. A Justiça ignorou completamente o que determinara o general que declarava preferir “o cheiro de cavalo ao cheiro do povo”.

A lei é um nó

O tempo passou e o nó deformante da lei foi se atando cada vez mais. O que não faltam são pedidos de familiares de mortos e desaparecidos políticos para que torturadores sejam criminalmente responsabilizados, mas, com razão, como veremos posteriormente, o STF sempre manteve incólume a Lei da Anistia. Uma tentativa de afrouxar o tal nó deu-se na semana passada com o início do julgamento pelo STJ de recurso do MPF. Houve uma inteligente estratégia. O MPF não pediu alteração da lei, mas pleiteou, isso sim, que os militares responsáveis pelo atentado à casa de shows Riocentro, no Rio de Janeiro, na
noite de 30 de abril de 1981, sejam considerados “criminosos contra a humanidade” — e, com isso, seus crimes deixam de se enquadrar na anistia. O atentado visava a explodir um show em homenagem ao 1º de Maio, mas a bomba acabou detonando-se sozinha no colo do sargento que a carregava no interior de um Puma. O sargento morreu, e ferido saiu o capitão Wilson Machado, socorrido (ironia do destino) por Andrea Neves, irmã de Aécio Neves, que chegava ao local naquele momento. O atentado foi feito pela extrema direita para que a culpa acabasse jogada na extrema esquerda e, assim, a ditadura, que caminhava à abertura, inevitavelmente se redrudeceria (liderava essa tigrada o general Sílvio Frota). Repare-se, portanto, que o MPF não falou sobre anistia, falou de crime contra a humanidade. Na quarta-feira 28, o STJ nada decidiu porque um dos ministros pediu vistas do processo.

Entre os princípios da “constitucionalidade” e da “convencionalidade”, tem de valer a Constituição brasileira, garantidora do Estado de Direito

A decisão da corte no futuro, seja ela qual for, não guarda portanto relação direta com a Lei da Anista. Como se afirmou acima, acertadamente o STF em suas decisões decidiu deixá-la intacta, e não por seguir a medrosa linha de que não devemos provocar monstros do passado. O fato é que a Constituição de 1988 recepcionou a Lei da Anistia como ela é, e nem daria para ser diferente porque jamais a Constituição poderia retroagir e alterar uma Lei de 1979 (anterior a ela, portanto) para punir pessoas, embora sejam elas psicopatas torturadores (a lei só retroage para absolver, não para condenar). Por isso o STF vem julgando a Lei da Anistia constitucional (é quase de ofício). É justa a eterna revolta de familiares de mortos e desparecidos políticos, mas o erro foi lá embaixo. Se colocado na mesa o choque da “constitucionalidade com a convencionalidade” (somos signatários da Convenção Interamericana de Direitos Humanos), também assim tem de vigir a nossa Constituição — garantidora do Estado de Direito e melhor profilaxia contra eventuais aventureiros que hoje ou amanhã queiram do poder lançar mão.