Uma execução brutal e covarde. Um atentado à democracia. Um desafio à política de segurança pública criada com a intervenção federal no Rio de Janeiro. Uma comoção global que aglutina vozes em defesa dos direitos de minorias e clama por um basta à violência fora de controle no País. Mais que um crime hediondo, o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL) e de seu motorista Anderson Pedro Gomes, na noite da quinta-feira 14, expõe diversas faces da fragilidade institucional que aprofunda os sentimentos de medo e de desilusão dos brasileiros. As consequências dessa monstruosidade ainda estão longe de serem perfeitamente compreendidas. Encontrar os culpados e obter a verdade sobre suas motivações é apenas um passo – obrigatório, mas não suficiente – para que o desejo de justiça exigido pela sociedade seja minimamente atendido.

Marielle Franco, 39 anos, havia participado do evento “Jovens Negras Movendo as Estruturas”, na Lapa, região central do Rio de Janeiro, e de lá seguiria de carro para a vila simples em que morava, na Tijuca, zona norte da cidade. Estava acompanhada da assessora Fernanda Chaves e do motorista Anderson Pedro Gomes. Quatro quilômetros depois, atiradores abriram fogo contra o carro. Dos nove tiros disparados, três acertaram a cabeça de Marielle. Outro, seu pescoço. Gomes levou três balas nas costas. Ambos morreram. A assessora teve ferimentos por estilhaços e passa bem. Os tiros abalaram o Brasil e o mundo. A revolta, imensa, trouxe uma certeza absoluta: essa barbárie não pode ficar sem uma resposta rápida.

O assassinato fez com que Marielle, que não teve tempo de construir uma identidade nacional, ganhasse um súbito reconhecimento em todo o País — e no mundo. Se a intenção era calar a militante defensora da igualdade de direitos, a voz de Marielle agora ecoa mais forte, vigorosa e urgente. Representantes dos Três Poderes, lideranças de grupos, movimentos e agremiações, partidos políticos e governantes manifestaram repúdio e clamaram por investigação. O presidente Michel Temer, que classificou o ato de “extrema covardia”, se reuniu com os ministros Sergio Etchegoyen, do Gabinete de Segurança Institucional, Eliseu Padilha, da Casa Civil, e Moreira Franco, da Secretaria Geral da Presidência, além do secretário executivo do Ministério Extraordinário da Segurança Pública, general Carlos Alberto dos Santos Cruz, para oferecer ajuda. A Polícia Federal seria uma delas. O chefe da Polícia Civil do Estado do Rio, Rivaldo Barbosa, frisou que a condução do caso seria da Delegacia de Homicídios (DH), e que a instituição que ele dirige “tem capacidade para resolver o caso.” A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, quer a federalização da investigação: “Esse é um caso que precisa do apoio de todas as polícias investigatórias.”

Batalhão da morte

O 41º BPM do Rio é conhecido como o “Batalhão da Morte”. Desde 2017, seus policiais mataram 112 pessoas de favelas da zona Norte. Quatro dias antes de ser morta, Marielle denunciou: “O 41º BPM está aterrorizando e violentando moradores do Acari”.

A execução pode ter sido uma resposta às denúncias de Marielle contra o que ela chamava de “extermínio de jovens por policiais” na favela de Acari, na zona norte do Rio. Quatro dias antes de ser morta, ela postou em rede social: “Precisamos gritar para que todos saibam o que está acontecendo em Acari. O 41º Batalhão da Polícia Militar do Rio de Janeiro está aterrorizando e violentando moradores”. Ela também contestava a intervenção federal no estado: “Ficou pior”, escreveu. Até o fechamento dessa edição, na sexta-feira 16, a polícia já exibia algumas certezas: o crime foi planejado com antecedência, o atirador tinha habilidade com pistola calibre 9 milímetro – usada no crime -, dois carros estavam seguindo Marielle e um deles era clonado, com placa fria da Baixada Fluminense, no Rio, e a execução aconteceu em um ponto da rua que não tem muitas câmeras. Marcelo Freixo, político correligionário de Marielle e um dos melhores amigos dela, disse que ninguém tinha conhecimento de possíveis ameaças. Para ele, as investigações não devem ir na linha “polícia versus direitos humanos” pois a vereadora era parceira da luta de bons policiais e da Delegacia de Homicídio, que hoje investiga sua morte. “Trabalhávamos juntos aos policiais, tínhamos os mesmos objetivos”, ressaltou ele, emocionado. E não era o único.

INDIGNAÇÃO Protestos em Brasília (foto 1), no velório, no Rio (foto 2), e diante do Masp, em São Paulo: todos querem apuração rigorosa (foto 3)

Desde que a notícia do crime se espalhou, o Rio mudou. Muitos rumaram para o local dos assassinatos e ficaram em vigília por toda a madrugada. No dia seguinte, uma multidão se reuniu na Cinelândia, no Centro, enquanto os corpos de Gomes e Marielle eram velados por parentes e amigos na Câmara de Vereadores. Milhares de pessoas com a mesma aparência de perplexidade se abraçavam chorando. Carlos Eduardo de Azevedo, estudante de Relações Internacionais, 29 anos, resumiu: “Estamos aqui porque também levamos um tiro. A cidade está destroçada, a democracia brasileira foi atingida no peito. Esperamos pelas respostas, resta saber se as instituições querem esclarecer isso.” A todo momento, as conversas eram interrompidas por gritos de “Marielle, Presente!” e “Anderson, Presente”. A morte de Marielle motivou protestos em diversas cidades brasileiras e em ao menos oito países. O Parlamento Europeu também repudiou o assassinato da vereadora. Com cartazes dizendo “Marielle presente, hoje e sempre”, deputados anunciaram preocupação com a violência no Brasil.

USO POLÍTICO

Em nossa história, não são raros os assassinatos que se converteram em bandeiras da sociedade. A morte do estudante Edson Luís de Lima Souto, baleado por policiais militares no restaurante Calabouço após uma passeata-relâmpago no Rio de Janeiro, em março de 1968, mobilizou o País contra o regime militar. Vinte anos depois, o assassinato de Chico Mendes, seringueiro e ativista premiado internacionalmente, se tornou um símbolo do movimento ambientalista. Executada de maneira tão covarde quanto inaceitável, a vereadora Marielle Franco se tornou mártir de duas causas que se cruzam no polarizado Brasil de 2018: a violência e o ódio. De um lado, por ser uma voz dedicada a combater os abusos policiais que de forma recorrente vitimam a população mais pobre, na qual ela mesma se inseria. De outro, por ter sido assassinada em um contexto político no qual se questiona os métodos empregados no combate à violência — com a intervenção federal sobre a segurança pública do Rio de Janeiro — e sobra desilusão dos cidadãos brasileiros com a política. Ao escolher a vereança como espaço de atuação, a socióloga Marielle Franco travou combates legítimos e dentro da legalidade, ao contrário de seus assassinos. Ela, que presidiu a Comissão de Defesa da Mulher da Câmara do Rio, fazia parte de um grupo de quatro relatores de comissão que iria monitorar os trabalhos feitos por agentes do estado durante a intervenção no Rio.

NO MUNDO Houve protestos contra o assassinato em Londres, Lisboa, Bruxelas e Nova York

Agora, ao mesmo tempo em que é louvável transformar em bandeira tragédias de repercussão nacional, apoderar-se politicamente do símbolo de pessoas brutalmente assassinadas, como a vereadora, é algo nefasto, um desrespeito à sua memória e às suas causas — entre elas, a inabalável crença nas instituições democráticas. Entre as aberrações cometidas no afã de sequestrar a imagem da vítima há frases como a do deputado federal Eduardo Bolsonaro, filho do pré-candidato à presidência Jair Bolsonaro: “Mais uma lição: se você morrer seus assassinos serão tratados por suspeitos, salvo se você for do

LUTO Em Curitiba, mulheres se emocionam e responsabilizam a omissão do Estado pelas mortes de Marielle e de Anderson (Crédito:Hamilton Zambiancki/Futura Press/Folhapress)

PSOL, aí você coloca a culpa em quem você quiser, inclusive na PM. Eis o verdadeiro preconceito, a hipocrisia”. No outro extremo, a militância petista tenta se apossar da tragédia em benefício próprio. Em nota divulgada na quinta-feira, o PT afirma: “A cruel execução de Marielle choca a Nação e põe a nu a violência e a criminalização da pobreza, do povo negro, das mulheres, jovens e LGBTs, dos militantes dos movimentos sociais e da esquerda. Marielle vive em nossa luta. É nesse ambiente opressivo que o governo golpista vai impondo sua agenda de retrocessos e desmontes de direitos históricos dos trabalhadores e das políticas sociais conquistadas pelo povo nos governos do PT, voltando-se até mesmo contra uma das mais simbólicas dessas conquistas, o Bolsa Família.” Ao usar a biografia de Marielle (que era do PSOL) para dourar uma narrativa político-partidária, a legenda comete mais uma insensatez.

HISTÓRIA DE LUTA

As conquistas de Marielle nada têm a ver com a oportunista pregação do PT. Nascida e criada no complexo de favelas da Maré, zona norte do Rio de Janeiro, ela cresceu em uma família pobre e batalhou para concluir os estudos. Graças ao cursinho comunitário da Maré, se formou em sociologia pela PUC-Rio e se tornou mestra em administração pública pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Sua dissertação de mestrado teve como título “UPP: a redução da favela a três letras”. Engajada nas lutas LGBT, feminista e contra o racismo, ela mesma se apresentava como “mulher, negra, mãe e cria da favela da Maré”. A vereadora decidiu começar sua vida política quando uma amiga foi morta vítima de bala perdida.

Defensora dos direitos humanos, foi assessora parlamentar do deputado estadual Marcelo Freixo, do mesmo PSOL. Com ele, participou da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa. Marielle também trabalhou na Brasil Foundation e no Centro de Ações Solidárias da Maré (Ceasm), organizações da sociedade civil. Momentos antes de sua morte, enquanto participava de uma roda de conversa na Casa das Pretas, na Lapa, ela lembrou a importância de estar em um espaço de poder que, historicamente, não era reservado para pessoas como ela: “O mandato de uma mulher negra, favelada, periférica, precisa estar pautado junto aos movimentos sociais, junto à sociedade civil organizada, junto a quem está fazendo para nos fortalecer naquele lugar onde a gente objetivamente não se reconhece, não se encontra, não se vê.” O evento do qual ela participara pouco antes de morrer teve como tema “Jovens negras movendo as estruturas”. Sua filha Luyara Santos, de 19 anos, resumiu o atentado à democracia em uma frase: “Mataram minha mãe e mais de 46 mil eleitores! Nós seremos resistência por que você foi luta!”

ENGAJAMENTO Marielle (ao microfone) participou de encontro com militantes negras, no Rio, horas antes de morrer (Crédito:Divulgação)

“Estamos aqui porque também levamos um tiro. A cidade está destroçada, a democracia brasileira foi atingida no peito” Carlos Eduardo de Azevedo, estudante

 

A manifestação em São Paulo

A morte de Marielle motivou protestos em várias cidades brasileiras e pelo mundo. No Brasil, as manifestações aconteceram em ao menos 17 estados e no Distrito Federal. No mundo, atos pedindo o fim da violência estiveram presentes em pelo menos oito países. O Parlamento Europeu também repudiou o assassinado da vereadora. Com cartazes dizendo “Marielle presente, hoje e sempre”, deputados anunciaram preocupação com a violência no Brasil.

A reportagem esteve na manifestação que aconteceu no vão livre do Masp na quinta. Lá, a vereadora Sâmia Bomfim (PSOL) afirmou durante discurso que Marielle foi “uma grande mulher, uma grande militante, uma grande vereadora e uma grande amiga.” E disse que a vereadora estava sempre sorrindo: “Vocês nunca vão encontrar uma foto ou um registro da Marielle com a cabeça abaixada. A Marielle ousou percorrer um caminho que não foi construído para mulheres como ela.”

No meio de milhares de pessoas na avenida Paulista, uma mulher chamava a atenção no meio da multidão ao carregar no colo uma criança de apenas um mês. A cientista política Laila Carvalho, de 34 anos, afirmou que a presença delas era importante naquele ato para “não deixar mais continuarem matando a população negra sem fazer alguma coisa.” Fora isso, ela disse que sabemos que o momento político no Brasil é muito grave e delicado. “A gente sabia, desde o começo, que a intervenção tinha um foco muito específico para matar a juventude pobre, favelada e negra do Brasil. A gente não vai continuar deixando isso acontecer. A gente vai lutar e continuar o trabalho da Marielle.”

Usando uma camiseta com os dizeres “Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe”, o operador de loja Paulo Henrique dos Santos, de 27 anos, afirmou que a participação do povo de periferia em atos políticos que acontecem em centros é importante para que sejam ouvidos pelos poderosos. Segundo ele, a identificação com a vereadora morta é inegável. Assim como ela, Paulo conta que perdeu muitos amigos vítimas de violência policial. “Lembrando que ela é mais uma vítima de tudo o que está rolando. Nossa luta é por todos. Ela é a pauta do dia, mas tem o motorista dela e muitas outras pessoas que estão sendo esquecidas e precisam ser lembradas”, afirmou.

A manifestação, que saiu da Paulista, passou pela rua da Consolação e terminou na praça Roosevelt foi uma vigília. Durante a maior parte do percurso era possível ver as pessoas tristes, de luto e silenciosas. Em alguns momentos, ouviam-se gritos pedindo o fim da polícia militar e das mortes em decorrência de ações de agentes do Estado. Em outros, algum manifestante dizia: “Marielle”, e as outras pessoas gritavam: “Presente!”. Outras pessoas vítimas de violência policial também foram lembradas: o motorista Anderson Pedro Gomes, que acompanhava a vereadora quando foi assassinado; o pedreiro Amarildo de Souza, que foi assassinado por policiais da UPP na Rocinha; e Cláudia Silva Ferreira, que morreu depois de ser arrastada por uma viatura policial.