O título desta reportagem é uma pergunta sem resposta. No campo moral, a vida é o maior valor da humanidade e, por isso, não tem preço. No entanto, descendo da escala ética para a crueza de uma realidade em que o dinheiro é escasso, ela pode ser precificada e algumas acabam valendo mais do que outras. É o que acontece quando um cidadão entra com uma ação na Justiça para que tenha direito a um remédio ou a um tratamento importante para sua saúde ou evitar sua morte. Em geral, as decisões dos juízes são favoráveis aos pacientes, o que é ótimo para eles. No âmbito da saúde coletiva, porém, é um desastre. Afinal, a pessoa que obteve na Justiça uma vitória individual de alguma forma conseguiu fazer com que a sua vida valha mais do que a de alguém nas mesmas condições de saúde, mas que não consegue pagar um advogado ou sequer tem a informação de que isto pode ser feito. O paciente vitorioso tem culpa de sê-lo? Não. Segundo a Constituição, todos têm direito à saúde e o que ele fez foi acionar a Justiça para se assegurar deste direito. Não há culpa nestas situações, há sim uma desigualdade no tratamento que pode ser condenável, se analisada do ponto de vista coletivo, ou aceita se considerada pelo aspecto individual e legal. Este é o principal dilema trazido pela crescente judicialização da saúde, um fenômeno mundial que, no Brasil, alcança patamares impressionantes.

RENATO TREVELLIN preside a associação de apoio a pacientes com Atrofia Muscular Espinhal. Organizou as famílias para conseguirem na Justiça o fornecimento pelo Estado do único remédio contra a enfermidade, cuja única dose chegou a custar R$500 mil. A medicação garante a vida do filho, Gian Lucca, 6 anos, que tem a doença (Crédito:MARCO ANKOSQUI)

Segundo pesquisa recente solicitada pelo Conselho Nacional de Justiça ao Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), entre 2008 e 2017 houve um aumento de 130% no número anual de processos judiciais envolvendo questões de saúde na primeira instância. No mesmo período, o número de processos em geral cresceu 50%. Ou seja, menos do que a metade do que as demandas por saúde. “Em 75% dos casos os juízes dão ganho de causa aos pacientes, independentemente de as ações serem contra o Estado ou contra seguradoras privadas de saúde”, explica Paulo Furquim, do Centro de Regulação e Democracia, do Insper, e responsável pelo estudo. Estes números dão a exata dimensão do que está acontecendo hoje na gestão da saúde no Brasil: os magistrados, e não os médicos, arbitram quem deve receber um tratamento. Aqui, novamente, não há culpa dos juízes. Eles trabalham para julgar e decidir. No entanto, falta a eles preparo técnico para tomar decisões sobre problemas específicos e por diversas vezes polêmicos até entre a comunidade médica. Se acertam em milhares de casos, concedendo o que é demandado porque realmente precisa ser ofertado, eles também erram, e muito. “Eles não tornam explícitas as informações técnicas nas quais baseiam suas sentenças”, afirma Furquim. “É preciso facilitar o treinamento dos juízes.” O órgão técnico existente com essa finalidade é o Núcleo de Apoio Técnico do Poder Judiciário. No entanto, por causa da enorme demanda, é cada vez mais difícil dar conta de tantos processos.

JUSSARA DEL MORAL faz tratamento contra um câncer que começou na mama e se espalhou pelo corpo. Ela usa uma medicação que obteve via ação judicial contra o plano de saúde e comemora dez anos de vida após o diagnóstico. “E ainda vou viver muito mais”, diz. (Crédito:MARCO ANKOSQUI)

Um caso emblemático de decisão equivocada foi a determinação, pela Justiça, do fornecimento pela Universidade de São Paulo (USP) de cápsulas de fosfoetanolamina. Trata-se de um produto sem eficácia comprovada contra o câncer que havia sido pesquisado na instituição e que despertou em muitos a esperança de cura. Cerca de 13 mil processos judiciais foram abertos contra a USP em 2015 pedindo as tais cápsulas. Como muitos ganharam liminares favoráveis, a USP teve produzir e dar a substância, apesar de não haver prova científica de benefício.

Em compensação, há centenas de doentes, em especial portadores de doenças raras, que não têm outra saída a não ser a judicialização. Há no Brasil 13 milhões de portadores de enfermidades do gênero. “Essas doenças são tratadas com drogas órfãs, únicas para cada tipo de patologia”, explica Antoine Daher, presidente da Casa Hunter, entidade de apoio a pacientes com enfermidades raras. Apenas 3% delas têm tratamento, normalmente com medicações de alto custo. Alto mesmo. Tome-se o exemplo da Atrofia Muscular Espinhal (AME), doença neuromuscular caracterizada por perda dos neurônios motores da medula espinhal e do tronco cerebral, o que leva à fraqueza muscular progressiva e atrofia. Recentemente, surgiu a primeira e única medicação para a enfermidade, o Spinraza. Porém, cada dose custa R$ 365 mil. O paciente tem que usar seis doses no primeiro ano e três nos anos seguintes.

Como uma família pode bancar isso sozinha? Praticamente impossível. Por isso, elas recorrem à Justiça. E há alguém capaz de dizer que se trata de uma medicação cara demais e que, portanto, aquele doente não possui direito à única chance de vida que tem? Impossível também. A vida de Gian Lucca Trevellin, seis anos, acometido pela AME, não vale o preço? Vale, claro. E a Justiça entendeu isso, concedendo à família o direito ao tratamento. Mesmo assim, isso não quis dizer que tudo correria sem pedras no caminho. “Em fevereiro de 2017 conseguimos decisão judicial favorável para que meu filho tomasse o Spinraza. Mas só recebemos o medicamento em março de 2018. Nesse período, 70 crianças morreram em decorrência da doença”, contou Renato Trevellin, pai de Gian Lucca e presidente da Associação Unidos pela Cura da AME. Hoje há cem pessoas recebendo a droga no País.

Outro exemplo de que a judicialização se mostra o único caminho é o fornecimento do remédio Soliris, indicado para a enfermidade rara chamada Hemoglobinúria Paroxística Noturna, que afeta o sistema sanguíneo. O tratamento custa quase R$ 2 milhões por ano. Mais de 300 pessoas conseguiram o remédio, gerando um custo para o Estado de R$ 700 milhões por ano. “É um caso legítimo porque se trata da vida de pessoas. Mas esse dinheiro sai de outros programas públicos, como vacinação e saúde da família, relevantes para uma quantidade maior de pessoas”, afirma o economista Furquim, do Insper. Só em 2017, o Ministério da Saúde destinou R$ 1,02 bilhão para compra de remédios e tratamentos exigidos por demandas judiciais.
Sem dúvida, é muito dinheiro em um país onde o cobertor para ações sociais é historicamente pequeno para o tanto de gente que deve cobrir. O ex-secretário de saúde de São Paulo, David Uip, por exemplo, quando no exercício do cargo viu-se rotineiramente diante de sentenças judiciais justas que não tinha como cumprir na prática por falta de recursos. Mas também deparou-se com pedidos absurdos cedidos pela Justiça, como o fornecimento pelo Estado de sabonetes a remédio para cachorro, além de esquemas de fraude. Mas, nos casos de necessidade real, como gestor que era, lutava diariamente para resolver o dilema ético que povoa principalmente a mente de quem determina para onde vai o dinheiro: afinal, quanto vale a vida? Quem morre para que outros sobrevivam?