Há uma lacuna nos dados sobre assassinatos de mulheres seguidos por suicídio cometidos por agentes de segurança. Falta de informações e estruturas de corporações dificultam prevenção deste tipo de crime.O réveillon deste ano deveria ter sido um dia de comemoração, mas se tornou uma tragédia para a família de Rachel Gimenez, de 41 anos. Após celebrar a noite com amigos e parentes, ela e a filha, de 13 anos, foram assassinadas pelo então namorado de Rachel, o policial penal Antônio Lourenço da Paixão Filho, de 49 anos.
Após cometer o feminicídio, Antônio se suicidou. "Ele era muito possessivo", lembra a farmacêutica Alzira Gimenez, de 23 anos, sobrinha de Rachel.
Casos como esse não são isolados. Um levantamento realizado pelo Instituto Fogo Cruzado em quatro regiões metropolitanas do país – Recife, Rio de Janeiro, Salvador e Belém – mostra que feminicídios seguidos por suicídio têm sido um ciclo recorrente quando o agressor é um agente de segurança.
Em oito anos, o Fogo Cruzado identificou 35 feminicídios ou tentativas cometidas por agentes de segurança. Desses, dez terminaram em suicídio e quatro em tentativas. Os dados, porém, são um recorte de um universo que pode ser muito maior, mas ainda é bastante desconhecido.
Dez anos depois de incluir o feminicídio no Código Penal por meio da Lei nº 13.104/15, o Brasil ainda não consegue monitorar, quantificar e acabar com os ciclos de violência contra a mulher cujos agressores são da própria força de segurança pública do país.
"Chamar a polícia não é opção para toda e qualquer mulher. Existe uma parcela significativa de mulheres para as quais esta não é uma alternativa, seja pelas experiências anteriores, seja pela confiança que se deposita na polícia", alerta Silvana Mariano, coordenadora do Laboratório de Estudos de Feminicídios (LESFEM) da Universidade Estadual de Londrina (UEL).
Olhar para esse fenômeno de feminicídios seguidos de suicídio entre policiais é importante, explica a socióloga e pesquisadora do Instituto Fogo Cruzado Iris Rosa, porque os dados governamentais sobre o tema não são públicos. "E também porque é o Estado que forma esses profissionais. É ele quem dá uma arma na mão desses homens", diz.
Realidade subnotificada
Os dados do Fogo Cruzado focam nas quatro regiões onde o instituto faz o monitoramento de disparos de arma de fogo. Além deste, há apenas outro levantamento no país que monitora sistematicamente os homicídios e feminicídios seguidos de suicídio entre policiais, bombeiros e guardas, o boletim anual do Instituto de Pesquisa, Prevenção e Estudos em Suicídio (IPPES).
O levantamento – feito com base em pedidos de Lei de Acesso à Informação (LAI), análise de reportagens e informações coletadas por uma rede de parceiros – mostra que os dados oficiais não refletem a quantidade real de casos que vêm ocorrendo.
Entre 2018 e 2023, de acordo com os dados oficiais, foram 62 homicídios/feminicídios seguidos de suicídios praticados por agentes de segurança. Entretanto, o número sobe para 88 quando contabilizadas as informações obtidas por fontes extraoficiais.
Outro levantamento que traz dados sobre o fenômeno é o Monitor de Feminicídios do Brasil, do LESFEM. Segundos os dados de 2024, que serão divulgados de forma completa em março, houve pelo menos 300 casos de suicídio tentados ou consumados após um feminicídio no país. O relatório deste ano não discriminará os dados por profissão, mas em 2023 o monitor contabilizou 37 casos em que o agressor era das forças de segurança pública.
De acordo com Fernanda Cruz, pesquisadora do IPPES e do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), a forma como os dados são registrados facilita a subnotificação.
"São duas mortes [o feminicídio e o suicídio] que são notificadas separadamente. Não existe um vínculo entre elas. E, por outro lado, nem sempre a mídia divulga casos de suicídio e feminicídio", diz. Com isso, não há como responder se os casos de feminicídios seguidos de suicídio são mais frequentes entre policiais do que na população geral.
De acordo com Dayse Miranda, socióloga e diretora do IPPES, não há interesse das próprias instituições de segurança de coletar esse dado. E a desvinculação das mortes nos registros oficiais impede a interpretação do que está por trás das ocorrências.
"Eles são classificados como dois fenômenos diferentes [suicídio e homicídio/feminicídio], mas na verdade são um único. Os feminicídios seguidos de suicídios são mortes violentas que têm como pressuposto a questão de gênero", afirma Miranda.
O que está por trás
Apesar da ausência de dados, as especialistas entrevistadas pela DW afirmam que os feminicídios seguidos de suicídio provocados por agentes de segurança estão fundamentados no encontro de dois problemas: as opressões de gênero na sociedade e a estrutura das instituições de segurança que valorizam a masculinidade e a violência.
Por isso, para as especialistas, é preciso olhar os dados de feminicídio junto aos números de adoecimento mental dentro das corporações policiais. Não para justificar o feminicídio, mas para entender como as duas mortes se associam e como a própria estrutura da segurança pública contribui para ambos.
"De um lado, temos homens machistas, tradicionais, opressores, matando suas companheiras. Do outro lado, você tem outro processo de vitimização, que é a máquina produtora de violência que adoece o profissional", afirma Miranda.
De acordo com a pesquisadora em Saúde Coletiva e Segurança da UEL Eneida Santiago, os agentes de segurança pode exacerbar a violência com a qual convivem para as famílias e companheiras, principalmente quando submetidos a condições de trabalho extenuantes, e escalas que os distanciam da família e dos amigos. "Tolerar a violência se torna necessário em função da sobrevivência. Ficar atento, ligado e dessensibilizado o tempo todo se torna mais econômico psicologicamente", diz.
"O policial tem um índice de divórcio muito grande, conflitos familiares muito recorrentes, porque ele passa a maior parte do tempo fora e quer levar para dentro de casa a estrutura", acrescenta Miranda.
Mariano acredita que o desfecho trágico para vítima e agressor nesses casos reflete também a ideia romântica de relacionamentos. "Em grande parte, esses casos vêm acompanhados de um divórcio ou uma tentativa de divórcio. Então, há essa posse em relação à mulher, mas também tem um tipo de dependência com aquela relação."
Familiares e amigos de Rachel Gimenez contam, por exemplo, que Antônio sempre foi muito desconfiado e controlava todas as atividades que ela fazia. "Ele vigiava a ex-esposa dele, fazia com a Raquel também. Já bateu numa filha dele", relata um ex-colega de trabalho de Antônio que prefere não se identificar por medo de represálias profissionais. "Ele chegou a sair várias vezes escondido do trabalho para vigiar ela. Mas faltou discernimento para eu entender que ele era um assassino. Eu poderia ter denunciado e agora me sinto na impotência", lamentou.
Aumento geral de suicídio entre policiais
Atualmente, o suicídio é a maior causa de morte entre policiais no Brasil. Dados do último Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostram que a taxa de suicídio entre policiais civis e militares da ativa cresceu 26,2% em 2023, e que o suicídio na categoria é quase oito vezes mais frequente do que na população geral.
Assim como o feminicídio costuma ser um último ato dentro de um ciclo de violência prévio, o suicídio é multifatorial e geralmente acompanhado de um histórico de adoecimento mental. Mas dentro das corporações de segurança pública é difícil identificar quem precisa de ajuda.
Isso acontece porque há uma falta de assistência à saúde mental do profissional, mas também porque se revelar doente pode afastá-lo de bonificações e funções mais bem remuneradas – o que impede muitas vezes as denúncias das companheiras.
O último levantamento do IPPES mostrou que oito em cada dez vítimas de homicídios ou feminicídios praticados por agentes de segurança possuíam algum vínculo íntimo atual ou anterior com o agressor que depois tirou a própria vida. Das 108 vítimas de homicídio ou feminicídio identificadas, 76% delas eram mulheres.
Por isso, as pesquisadoras defendem que as famílias dos agentes de segurança devem ser envolvidas nas ações de prevenção. "Não adianta só dar colete, viatura, condições materiais para trabalhar. Você tem que dar condições de humanizar o profissional", diz Miranda.
Em 2023, dos 14 casos em que houve feminicídio ou homicídio seguido de suicídio de um agente da segurança pública identificados pelo IPPES, em ao menos três a vítima tinha uma medida protetiva contra os ex-companheiros, mas nem sempre as corporações sabem dessas medidas. "Quando entrevistamos policiais que pensaram em suicídio, observamos essa dimensão da violência doméstica presente nessas narrativas", diz Cruz.
Mariano pondera, porém, que é fundamental compreender que o feminicídio acontece também fora do contexto doméstico e familiar. Nesse sentido, não apenas as companheiras desses agentes de segurança podem ser alvo dos crimes, como colegas de trabalho e também mulheres que buscam os serviços.
O papel da arma de fogo
Na maioria dos casos de feminicídio seguido de suicídio praticado por um policial ou guarda, a arma de fogo é o instrumento utilizado. "Num ambiente em que há violência doméstica, a presença de uma arma de fogo faz com que o nível da violência escale e deixa a vítima coagida", diz Rosa.
Para ela, conhecer os dados de feminicídio seguido de suicídio é importante para compreender como as armas fornecidas pelo Estado estão sendo usadas no contexto da vida privada dos agentes. "Há uma tendência de crescimento de casos e um padrão, o uso da arma de fogo. Se a gente quer uma política pública para prevenção de suicídio e homicídios/feminicídios seguidos de suicídio, a gente tem que trabalhar o acesso à arma de fogo", afirma Miranda.
Em 2019, a Lei Maria da Penha foi atualizada para prever a apreensão de armas de fogo registradas ou sob posse do agressor em caso de violência doméstica, mas no caso dos agentes de segurança pública eles têm direito ao porte funcional. As análises, entretanto, acontecem caso a caso, via Justiça.
Em outubro do ano passado, o feminicídio se tornou um crime autônomo, e as penas foram agravadas para reclusão de 20 a 40 anos. Segundo o último Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 1,4 mil mulheres morreram vítimas de feminicídio em 2023, a maior quantidade da última década.
Rachel ainda não integrou as estatísticas de feminicídio, mas já estava nas de violência doméstica provocada por policiais, em função de um relacionamento anterior. "Minha tia ficou em dois relacionamentos em que sofreu muito. Ela amou muito, mas nunca soube o que era ser amada", conclui Alzira Gimenez.