Getúlio Vargas (1882-1954) não esperou para partir ao exílio voluntário. Dois dias após ter sido deposto por uma junta militar, em 29 de outubro de 1945, desembarcava na terra natal, São Borja. Ali, na campanha gaúcha, longe da mulher Darcy, da filha e assessora particular Alzira Vargas do Amaral Peixoto (1914-1992) e da luta política da capital federal, pretendia descansar e participar das lidas do campo nas estâncias de sua família. Primeiro na de Santos Reis e, no ano seguinte, da Fazenda do Itu, no vizinho município de Itaqui. Não demorou a ganhar o apelido de “O Solitário do Itu”. Mas não parecia triste nem solitário: cavalgava, tomava chimarrão com os peões e a se divertia dançando em fandangos na fazenda do amigo João Goulart.

Com saudades, escrevia uma carta por dia a Alzira, casada com o político Ernani do Amaral Peixoto e mãe de Celina, nascida em 1944, neta favorita de Getúlio. Alzira lhe respondia de imediato, usando o mesmo portador que trazia as cartas do pai. Assim mantinham o sigilo. Nessas missivas e bilhetes, Getúlio chamava Alzira de “Rapariguinha”, enquanto esta se dirigia a ele como “meu querido pai” e “Gê”. Em tom coloquial, misturavam confissões com animadas discussões em torno dos últimos acontecimentos na política.

 

Todos esses detalhes estão registrados em 568 cartas, ao todo 1.650 páginas que acabam de ser reunidas nos dois volumes de “Volta ao Poder: A correspondência entre Getúlio Vargas e a filha Alzira, 1946-1950”, lançamento das editoras FGV e Ouro Sobre Azul. A edição é de Adelina Novaes e Cruz e de Regina da Luz Moreira, ambas pesquisadoras do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas. A obra ainda conta com a supervisão de Celina do Amaral Peixoto. O acervo, quase todo inédito, faz parte dos Arquivos de Getúlio (com 30 mil documentos) e de Alzira (com outros) mil itens, além das mil fotografias da coleção de Getúlio e das 10 mil da coleção de Alzira. Os arquivos do pai foram doados por Alzira em 1973, quando o CPDOC foi fundado. Celina cedeu os de sua mãe em 1997. Também fazem parte do acervo papéis quer eram do político Ernani do Amaral Peixoto. Foi Alzira quem organizou a correspondência no início dos anos 1970.

Divulgação

“Na fazenda, meu avô dançava, montava e revelava um fino humor quando escrevia cartas”
Celina do Amaral Peixoto, historiadora

Grão de bico

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Os volumes trazem revelações pessoais e políticas. Getúlio faz declarações de amor aos parentes e encomendas de charutos e do barbitúrico Nembutal, que usava. Ele quer saber se Celina se lembra do vovô, e Alzira dá notícias dos “piolhos”, como chamava os filhos. “A pesquisa me fez lembrar da importância dele para minha vida e minha formação”, diz Celina. “Vivíamos pedindo notícias um do outro.”

Alzira era informante das conspirações dos políticos. As conversas evoluíram até um plano de retorno de Getúlio em 1950, agora pelo poder do voto. Entre as revelações políticas, Alzira critica o pai por ter governado o País de forma autocrática entre 1938 e 1945, sem ouvir um único político. “Alzira tinha posição diversa da de Getúlio”, diz Celina. Nas cartas, Vargas faz troça de seu ex-ministro da Guerra, Eurico Gaspar Dutra, que o depôs e lhe pediu apoio à presidência da república. Dutra é chamado por Vargas de “Grão de Bico”, devido ao formato de sua cabeça.

Em 1946, Getúlio volta à política vencendo eleições para senador na Constituinte. Assumiu o cargo, mas se licenciou. Num bilhete de outubro, Alzira elogia o fato de ele ser “bom de briga”. No fim, ironizando o perigo que terão de enfrentar, exclama: “Eta, túnel escuro danado!”

Na iminência da vitória, em 1950, Getúlio reclama dos militares: “Rapariguinha (…) chegam-me os boatos de conspirações de generais, açudados por jornalistas e políticos fracassados, convencidos que a democracia é para o seu proveito pessoal.”

Para a neta Celina. o mais impressionante no fluxo diário de correspondências ao longo de cinco anos é o retrato de um Brasil bem diferente do atual: “As cartas retratam um País que aprendi a amar e não existe mais. Getúlio Vargas jogava aberto, era um homem honesto, digno e honrado que queria o melhor para a nação. Entre os políticos de hoje, os interesses privados estão acima dos públicos”.


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