Desde a redemocratização, nove nomes passaram pelo comando do Ministério Público Federal, e as histórias construídas por alguns deles nos corredores de Brasília demonstram como os laços entre um procurador-geral da República e o presidente podem modular a rota política do País. Geraldo Brindeiro, no governo de Fernando Henrique, inaugurou a complacência com o presidente, mas o apelido de “engavetador-geral da República” foi reciclado e, hoje, é empregado a Augusto Aras, que, em situações vexaminosas, poupou Jair Bolsonaro e seu clã de investigações por casos rumorosos, das omissões na pandemia aos cheques depositados por Fabrício Queiroz na conta de Michelle.

Qual será a PGR de Lula? Presidente eleito não deve respeitar a lista tríplice e vai colocar alguém de sua confiança no lugar de Aras
LUCIANO MAIA Vice-procurador-geral da República na gestão de Raquel Dodge, disse que a prisão de Lula causou “grande dor” ao País (Crédito:Divulgação)

A condescendência não é a única característica compartilhada por Brindeiro e Aras. Os dois ascenderam na carreira a contragosto da própria classe — tanto FHC quanto Bolsonaro ignoraram a lista tríplice da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), que apresenta ao presidente os três nomes mais votados pela categoria para a chefia da PGR.

Amargando o aparelhamento, procuradores chegaram a ver em Lula um sopro de esperança pela retomada da tradição, respeitada por ele próprio, Dilma Rousseff e Michel Temer. O presidente eleito, porém, já sinalizou que, ao contrário do que fez em seus dois primeiros governos, não repetirá a deferência no ano que vem. O petista, afinal, está calejado. Ele e Dilma sofreram com dores de cabeça impostas por PGRs escolhidos a partir da lista, embora tenham somente cumprido seus deveres funcionais. Antonio Fernando de Sousa desbaratou o Mensalão. Roberto Gurgel endossou as denúncias sobre o esquema de compra de votos de parlamentares e atuou na instrução dos processos que levaram à condenação de homens fortes do PT, como José Dirceu. Rodrigo Janot, escolhido por Dilma, conduziu a PGR no início da Lava Jato e denunciou o “Quadrilhão do PT”, caso que acabou arquivado.

Qual será a PGR de Lula? Presidente eleito não deve respeitar a lista tríplice e vai colocar alguém de sua confiança no lugar de Aras
AURÉLIO RIOS Ex-procurador dos Direitos do Cidadão, defendeu a manutenção da condenação de Arthur Lira por improbidade (Crédito:Divulgação)

De olho no passado, Lula quer fazer diferente na volta ao Planalto. No lugar de Augusto Aras, que deixará o comando da PGR em setembro, o petista pretende colocar um “nome técnico, mas de confiança”. No núcleo do presidente eleito, Antonio Carlos Bigonha desponta como franco favorito. Amigo do ex-ministro Eugênio Aragão, o subprocurador-geral é um crítico voraz da Lava Jato e, em 2021, assinou uma carta aberta em favor do fim da Operação. No mesmo ofício, defendeu que o Supremo mantivesse público o acervo da Operação Spoofing, formado por mensagens trocadas entre Sergio Moro e integrantes da força-tarefa de Curitiba e publicizadas por um hacker.

Defesa da Lava Jato

Na bolsa de apostas da categoria, correm por fora Aurélio Virgílio Veiga Rios, ex-procurador federal dos Direitos do Cidadão, e também afinado nas críticas à Lava Jato, e Luciano Maia, vice-procurador-geral da República na gestão de Raquel Dodge.

Qual será a PGR de Lula? Presidente eleito não deve respeitar a lista tríplice e vai colocar alguém de sua confiança no lugar de Aras
REJEITADO Aras não será reconduzido à PGR por Lula: poupou Bolsonaro o tempo todo (Crédito:Divulgação)

Antes visto como um dos candidatos com maior potencial de vitória, apesar da proximidade com Janot, Nicolao Dino perdeu tração após a confirmação do irmão, o senador eleito Flávio Dino, no comando do Ministério de Justiça e Segurança Pública — a atuação dos dois em cargos de tamanha envergadura representaria, segundo admitem petistas, um conflito de interesses.
Apesar do imbróglio, não está certo se Lula substituirá a lista tríplice por outro instrumento. “No formato que está, ela não é o único e muito menos o melhor critério para a escolha”, diz o advogado Marco Aurélio de Carvalho, membro da transição.

Caso, ao fim e ao cabo, a escolha de Lula seja balizada pela relação dos mais votados na categoria, cogita-se ampliar a lista, tornando-a sêxtupla, com o envolvimento inédito de todos os ramos do MPF, da Ordem dos Advogados do Brasil e até mesmo do Congresso e do STF. “A lista seria mais representativa. Hoje, é formada pelo MPF e tem uma cara mais corporativista”, completa.

O Presidente da ANPR, Ubiratan Cazetta critica a possibilidade e pontua que a lista tríplice é uma tradição não somente para a escolha do PGR, mas de todos os chefes do Ministério Público, nas esferas estadual e federal.

Esse, aliás, não deve ser o único ponto de divergência entre procuradores e a equipe de Lula. Em uma reunião com Flávio Dino na última terça-feira, Cazetta mencionou a preocupação da categoria com a reestruturação do Conselho Nacional do Ministério Público, uma vez que o plano de governo não diz às claras de que forma o presidente eleito pretende construir o novo modelo.

A classe está ressabiada desde outubro de 2021, quando Arthur Lira e companhia tentaram, com a PEC da Vingança, ampliar o número de membros indicados pelo Congresso ao colegiado, que analisa processos disciplinares contra procuradores, além de conceder ao Parlamento a prerrogativa de indicar o Corregedor do MP. “Queremos evitar mudanças pelas quais interferências externas possam transformar o órgão de controle em um componente político de perseguição”, argumenta. O governo sequer começou, mas a PGR dos sonhos de Lula parece distante do ideal construído por membros do órgão.