Ainda no 2.º ano do ensino médio, Giulia da Silva Cerulio tirou 940 na redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), cuja nota máxima é 1.000. Guilherme Batistela, ainda no 2º ano e como treineiro no exame, também teve uma nota excelente na redação: 960. Já Luísa Jacomo, no segundo ano de cursinho, conseguiu a nota máxima da redação da Fuvest, de 50 pontos. Em comum, todos eles destacam os esforços para construir uma base sólida de repertório e bagagem cultural.
A redação é uma prova importante para os vestibulandos, já que algumas faculdades que usam a nota do Enem como porta de entrada colocam uma pontuação maior para a produção textual. Na Fuvest, por sua vez, a redação equivale a 25% da nota da segunda fase.
Hoje caloura da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), Luísa, de 20 anos, conta que, para gabaritar a redação do vestibular, ela se preparou produzindo textos duas vezes por semana e lendo exemplares de redações – tanto as suas próprias redações anteriores quanto as de outros vestibulandos que tiraram boas notas.
Ela recomenda que os estudantes se familiarizem com o banco de redações de referência do vestibular que o estudante pretende prestar. Alunos da FMUSP fizeram uma cartilha que contém orientações para redações e exemplares dos textos de alunos que tiraram notas altas.
Dentre as fontes que Luísa consumia, ela cita livros, séries, filmes, documentários e álbuns de música, além de ler jornais e ouvir podcasts, tanto noticiosos quanto sobre discussões de diferentes nichos, como de curiosidades científicas ou históricas. Ela recomenda aproveitar pequenos momentos enquanto faz uma comida ou vai para a escola para ouvir os podcasts ou audiobooks.
Giulia, 17, que também quer estudar Medicina, defende que “tudo pode ser um repertório” se houver visão crítica e boa argumentação, enfatizando a importância da diversidade de fontes.
“A arte, exposições, livros, reportagens e documentários são insubstituíveis para o desenvolvimento de um olhar crítico”, diz a aluna do Colégio Marista Arquidiocesano, na Vila Mariana, zona sul da capital paulista.
Ela também se mantém por dentro das principais notícias e dos temas debatidos no País, lembrando que as redações de vestibulares têm temáticas atuais e que estão em alta no noticiário e no debate público.
Mas não dá para “fugir do básico, que é ler livros”, diz Guilherme Grandolfo, 17, que considera a leitura como a base para um repertório amplo e a melhor forma de adquirir bagagem cultural. O jovem recomenda estudar os movimentos literários do Brasil e ler os clássicos, especialmente aqueles que “demandam uma criticidade maior”.
Vestibulando para o curso de Direito, ele recomenda evitar os livros que “trazem uma análise rasa ou sem muita complexidade e ir nos livros que estão há muito tempo funcionando e trazendo críticas”.
Para ele, quando um estudante constrói uma base cultural, “pode vir qualquer tema (na redação) que ele vai conseguir ‘linkar’ com alguma parte da história” dos livros que leu ao longo do ano.
Giulia concorda, reforçando que a leitura fez com que não só ela tivesse um repertório melhor, mas também auxiliou no seu processo de escrita: “lendo bem, você consegue escrever melhor”.
Filmes conceituados também podem ser uma alternativa tanto para diversificar o repertório, quanto para quem tem dificuldade com o hábito da leitura.
“Tem vários filmes que têm também uma análise crítica, que você consegue colocar uma redação e impressionar o corretor ou trazer algo de impacto, assim como um livro muito profundo”, afirma Guilherme, aluno do Colégio Franciscano Pio XII, no Morumbi, zona sul de São Paulo.
Já Giulia lembra da importância de prestar atenção e participar ativamente nas aulas das disciplinas de humanas, como História, Geografia, Filosofia e Sociologia, porque o conteúdo de sala de aula também é repertório.
Como estratégia, ela fez um “caderno de repertórios” para anotar, aprofundar e organizar assuntos que poderiam servir de base para futuras redações, facilitando o acesso durante o estudo.
“Toda vez que eu ouvia de um professor ou em algum lugar um repertório que eu achava que seria produtivo para a minha redação, eu anotava e depois na hora do estudo eu me aprofundava nesse assunto e no autor daquilo que eu tinha ouvido, e assim eu consegui agrupar em um lugar só e de fácil acesso vários repertórios. Isso me ajudou muito a diversificar as fontes”, conta.
Ela também pratica a escrita regularmente, escrevendo redações com certa frequência para obter devolutivas e direcionar os estudos aos pontos que ainda precisa melhorar. “Isso tanto no quesito da gramática, da parte mais estrutural, quanto na questão da argumentação, que requer não só você inserir um repertório produtivo, como também você transmitir sua própria opinião de maneira efetiva”, diz.
Luísa, que antes foi aluna de cursinho pré-vestibular no Anglo, é hoje corretora e tutora de redação no cursinho popular da FMUSP. Com a visão desse outro lado, ela lembra que não basta “jogar” qualquer repertório só porque faz referência a uma fonte conceituada. “Precisa relacionar, de fato, com o tema e ter autoridade no assunto”.
Ela fala também sobre o diferencial da redação da Fuvest em relação à do Enem: o vestibular da USP permite uma abordagem mais abstrata e filosófica, com senso crítico aprofundado e reflexões sofisticadas, e a conclusão não precisa, necessariamente, de uma proposta de intervenção.
Independentemente do vestibular, é preciso garantir também coerência, consistência argumentativa e, claro, repertório cultural.
Quais repertórios eles usaram no Enem?
Os estudantes revelaram quais foram os repertórios usados nos textos que garantiram mais de 900 pontos na redação do ano passado, cujo tema abordava os Desafios para a valorização da herança africana no Brasil.
Guilherme usou o livro naturalista O Cortiço, de Aluísio Azevedo. “Eu explorei a relação do João Romão, português que era o dono do cortiço no Rio de Janeiro, e da Bertoleza, e a serva dele, como se fosse uma escrava, que era brasileira, negra, representando essa cultura africana no Brasil”.
“Usei essa relação dos dois para trazer como na sociedade brasileira hoje ainda tem essa mentalidade colonial, que muitas vezes se submete à mentalidade europeia”, completa.
O jovem também abordou o conceito de racismo estrutural, definido pelo filósofo Silvio Almeida, para discutir “como o racismo hoje não é algo apenas físico, que a gente vê em forma de violência, ou algo objetivo, mas subjetivo dentro das estruturas da sociedade, é algo simbólico”.
Giulia usou conceitos das autoras brasileiras Conceição Evaristo e Djamila Ribeiro, e recursos históricos aprendidos nas aulas de História para refletir sobre a escravidão.
“Conceição Evaristo é uma autora brasileira negra que fala sobre a pauta feminista e sobre a pauta negra no Brasil, então foi super produtivo pra mim, já que o tema era a preservação da herança africana no território brasileiro”, conta. “E também utilizei o conceito de lugar de fala, da Djamila Ribeiro”.
Já Luísa usou como referências principais conceitos do ambientalista e filósofo brasileiro Ailton Krenak e o livro Nós uma antologia indígena (2021), de Maurício Negro, para a redação cujo tema era As relações sociais por meio da solidariedade.
“Como tenho muito interesse por essa perspectiva da literatura indígena, eu trouxe tanto Ailton Krenak quanto uma antologia de contos que chama Nós: uma antologia indígena para desenvolver o tema contrapondo as questões de solidariedade e falei da pandemia também, que a gente podia ver como a solidariedade afetou nossas relações sociais naquele momento”, lembra a estudante.
Ela fala da importância de ler a lista de obras obrigatórias de outros vestibulares. Inclusive, ela conheceu o trabalho de Ailton Krenak por meio da lista de obras da Unicamp. “Talvez se eu não tivesse tido essa oportunidade de ter contato com outra lista, eu não teria o repertório que eu precisei no vestibular que eu passei de fato (Fuvest, da USP) e que eu estou aqui hoje fazendo faculdade”, conta.
Como recomendação, ela cita os podcasts que ela mais ouvia durante a preparação para o vestibular: Rádio Escafandro, Ciência Suja e Mamilos, para consumir conteúdos dos mais diversos temas.
Giulia, por sua vez, deixa como indicação o premiado filme brasileiro Ainda Estou Aqui (2024), de Walter Salles, que trata “de um período marcante da história brasileira, a ditadura militar”. Para ela, filmes como esse são “essenciais para a construção de uma visão crítica sobre os problemas do País”, e lembra que os temas da redação do Enem se baseiam em problemáticas brasileiras.