Qual é o legado do papa Francisco?

Qual é o legado do papa Francisco?

"FranciscoFrancisco criticou o capitalismo e a destruição da natureza, lavou os pés de jovens encarcerados e pregou a tolerância. Mas o primeiro pontífice da América Latina não atendeu a todas as expectativas.O pontificado do Papa Francisco, que começou com muitas promessas em março de 2013, chegou agora ao fim, com a morte do líder da Igreja Católica neste domingo (21/04).

Em um de seus primeiros atos, ele lavou os pés de jovens encarcerados em um centro de detenção antes da Páscoa, marcando qual seria o tom do seu papado. "Como eu gostaria de uma Igreja pobre, para os pobres!", disse em março daquele ano, três dias após sua eleição.

No mesmo ano, milhões de pessoas participaram da Jornada Mundial da Juventude no Rio de Janeiro, aplaudindo quando o novo papa criticou os excessos do capitalismo. Na ocasião, Francisco também visitou uma favela no Rio.

"Este é o papa da ruptura", afirmou à DW o teólogo Leonardo Boff na época.

E Francisco, antes chamado de Jorge Mario Bergoglio, de fato mudou a igreja. Mas nem todas as mudanças não atenderam às expectativas, especialmente no Sul Global, que esperava mais com eleição do primeiro papa da América Latina. Em geral, o resultado é ambivalente.

"O papa já fez muito pelos pobres em sua diocese durante seu período como arcebispo de Buenos Aires", disse à DW Miguel Hirsch, jornalista argentino que escreveu um livro sobre Francisco."Ele colocou muita coisa em movimento, inclusive com suas cerca de 40 viagens, a maioria das quais para países em desenvolvimento. E denunciou repetidamente o sistema capitalista."

Mas, como chefe da Igreja Católica por mais de uma década, muitas das esperanças que saudaram o primeiro papa latino-americano não se concretizaram no Sul Global.

A mudança climática foi uma mensagem central para Francisco

De acordo com a organização católica alemã de ajuda humanitária Misereor, uma dos principais feitos do papa foi como ele ajudou a chamar a atenção para a degradação do meio ambiente.

A Misereor considera a pobreza e a destruição ecológica como questões que devem ser enfrentadas coletivamente. Essa foi a mensagem central da segunda carta encíclica do papa, "Laudato Si" (Louvado Seja), publicada em 2015.

"Com a 'Laudato Si', o papa falou à consciência dos poderosos", disse Pirmin Spiegel, ex-diretor geral da Misereor, em 2024. "O arcebispo de Suva, em Fiji, Peter Loy Chong, me disse que as mudanças climáticas e a migração são as questões mais importantes para a população local."

Em um artigo para o jornal alemão Tageszeitung em 2023, Boff escreveu que a encíclica foi "a primeira vez que um papa tratou o tema da ecologia de forma holística". Ele acrescentou que muitas das declarações da encíclica tinham vínculos com a teologia da libertação.

"Este papa é uma decepção", escreveu Bento Domingues, um frade dominicano, em um artigo de opinião para o jornal português Público em 2023, apontando, de maneira irônica, para os detratores de Francisco. "Decepcionados também estão os leigos empenhados na renovação da Igreja, assim como os tradicionalistas superapegados ao passado. Para estes últimos, o Papa é um traidor, a ruína da Igreja. (…) Os mais entusiasmados com ele são os pobres, os marginalizados e invisíveis."

Aumento da influência da América Latina

Francisco reformulou a geografia do conclave, o colegiado de cardeais que elege o papa. Em 2013, a maioria dos cardeais era europeia. Mas durante seu período como papa, Francisco nomeou mais cardeais de outras partes do mundo, incluindo a América Latina, a África e a região da Ásia-Pacífico.

"Acho que o papa Francisco vai criar uma dinastia de papas do Terceiro Mundo", disse Boff à DW em 2013. E, sob Francisco, o Vaticano de fato vivenciou uma influência crescente por parte da América Latina.

Dada a distribuição global dos católicos, a Europa ainda permanece super-representada. De acordo com dados de 2023 do Pew Research Center, 24% dos católicos do mundo vivem na Europa, 39% na América Latina, 12% na região Ásia-Pacífico, 16% na África subsaariana, 8% na América do Norte e 1% no Oriente Médio.

Mesmo que tenha havido uma mudança na proporção regional, o papa não fez nenhuma mudança drástica nas estruturas da Igreja Católica. Isso foi particularmente notável no Sínodo dos Bispos para a região Pan-Amazônica, ou Sínodo da Amazônia, em Roma, em 2019. A exortação apostólica pós-sinódica de Francisco, "Querida Amazônia", acabou com todas as esperanças de reformas em uma região onde há uma escassez extrema de padres.

Não apenas a ordenação de homens casados de virtude comprovada (viri probati) como sacerdotes foi rejeitada, mas também a ordenação de mulheres como diáconos, o que lhes permitiria pregar e celebrar casamentos e batismos.

Pirmin Spiegel, que participou do sínodo amazônico, não entendeu a decisão. "Dois terços dos bispos no sínodo eram a favor do 'viri probati' e das mulheres diáconas", disse ele. "A bola estava na frente do gol, e [Francisco] não fez o gol, chutou para fora. Por quê? Não faço ideia."

Atuação fraca no combate ao abuso sexual na igreja

Houve também uma grande decepção com relação ao histórico do papa sobre abuso sexual na Igreja Católica.

A Rede de Sobreviventes dos Abusados por Sacerdotes (SNAP), fundada nos Estados Unidos em 1989, questionou por que o papa não traduziu suas palavras duras sobre o abuso em ações.

"Ele poderia ter aplicado a pena mais severa, a excomunhão, contra uma dúzia ou mais das autoridades eclesiásticas mais flagrantes que possibilitaram abusos. Ele não fez isso com nenhum facilitador ou predador", escreveu David Clohessy, ex-porta-voz da SNAP, no National Catholic Reporter em março de 2023.

"Ele poderia ter rebaixado pelo menos uma dúzia ou mais de burocratas do Vaticano e quatro ou cinco dúzias de bispos que esconderam crimes sexuais contra crianças, conhecidos ou suspeitos, e denunciá-los abertamente e expor sua cumplicidade", acrescentou.

"Mas ele perpetuiu um padrão pontifício de longa data de permitir discretamente que um bispo em apuros se 'aposente' ou 'renuncie', seja alegando enganosamente 'razões de saúde' ou não dizendo nada", acrescentou.

No Chile, os bispos foram mais rápidos em reagir do que o papa. Na esteira das revelações de abuso sexual em 2018, todos os bispos do Chile ofereceram sua renúncia ao pontífice – algo até então sem precedentes na Igreja Católica.

Devoção aos pobres do mundo

Francisco recebeu a maior aprovação dos pobres do mundo e de pessoas que, durante décadas, se sentiram ressentidas em relação a Roma.

Óscar Romero, o ex-arcebispo de San Salvador, foi uma dessas pessoas. Ele defendeu a reforma agrária em El Salvador e foi assassinado em 1980.

Seu processo de canonização começou em 1994. Mas o processo só foi concluído somente após 24 anos, em 14 de outubro de 2018, em Roma, pelo Papa Francisco.

Ainda na América Central, Francisco denunciou os excessos da ditadura de Daniel Ortega e sua esposa, Rosario Murillo, na Nicáragua. Em março de 2023, o papa Francisco descreveu o regime de Ortega na Nicarágua como uma "ditadura grosseira", um mês após a sentença de 26 anos e quatro meses de prisão proferida contra o bispo nicaraguense Rolando Álvarez, agora no exílio.

O papel de Francisco em denunciar perseguições no país foi lembrado após a morte do papa Opositores nicaraguenses no exílio lamentaram nesta segunda-feira a morte de Francisco e destacaram que ele denunciou a injustiça, a perseguição e o exílio vividos por críticos, dissidentes e pela Igreja Católica na Nicarágua durante o governo Ortega.

"Ele era um pastor próximo, profundamente humano, que nunca se esqueceu daqueles que sofrem e que tinha palavras corajosas para denunciar a injustiça, a perseguição e o exílio. Nossa Igreja na Nicarágua – perseguida, silenciada e muitas vezes esquecida – encontrou nele um padre que não nos deixou sozinhos", disse em mensagem o líder opositor Felix Maradiaga.