O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) pediu que a delação do tenente-coronel Mauro Cid, que foi seu ajudante de ordens na Presidência e revelou uma suposta tentativa de golpe de Estado após as eleições de 2022, seja anulada pelo STF (Supremo Tribunal Federal).
Os relatos de Cid foram o ponto de partida das investigações da Polícia Federal sobre a trama golpista, pela qual Bolsonaro e outras 30 pessoas foram acusadas de cinco crimes e poderão ser condenadas a até 43 anos de reclusão.
O imbróglio de Cid
Conforme reportagem publicada pela revista Veja na quinta-feira, 12, o tenente-coronel teria mentido no interrogatório ao qual foi no Supremo na condição de delator.
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Questionado pelo ministro Alexandre de Moraes, ele disse não ter usado as mídias sociais no período em que foi submetido a restrições por sua participação no processo. Mas a revista revelou capturas de tela que mostram Cid utilizando um perfil paralelo para se comunicar com um interlocutor por mensagens de aplicativo. Nas conversas, o tenente-coronel faz relatos diferentes daqueles dados na colaboração.
Após a publicação da reportagem, Bolsonaro disse que a delação do ex-ajudante “deve ser anulada” e o processo pelo qual é réu “precisa ser interrompido”. “A ‘trama golpista’ é uma farsa fabricada em cima de mentiras”, escreveu em publicação no X (antigo Twitter).
– As mensagens de Mauro Cid divulgadas pela Revista Veja escancaram o que sempre dissemos: a “trama golpista” é uma farsa fabricada em cima de mentiras. Um enredo montado para perseguir adversários políticos e calar quem ousa se opor à esquerda.
– Segundo o próprio delator,… pic.twitter.com/KJPuiHL1bD
— Jair M. Bolsonaro (@jairbolsonaro) June 13, 2025
Na Câmara, o deputado Ubiratan Sanderson (PL-RS) protocolou um pedido para anular a colaboração de Cid, em movimento que reabilita a estratégia dos bolsonaristas para descredibilizar o processo movido contra o ex-presidente e aliados.
Em meio às revelações, Cid chegou a ter uma ordem de prisão expedida — e depois retirada — por Moraes após a operação policial que prendeu Gilson Machado, ex-ministro de Bolsonaro, acusado de ajudar o tenente-coronel na tentativa de obter um passaporte falso de Portugal para deixar o Brasil. Tudo isso enquanto colabora com as apurações da trama golpista, pela qual também é réu.

O tenente-coronel Mauro Cid, ajudante de ordens, ao lado do então chefe Jair Bolsonaro
Há base para anulação?
A IstoÉ procurou dois especialistas do direito penal para responder a essa pergunta e entender como as revelações afetam o processo que julga uma suposta tentativa de ruptura institucional no país.
— Davi Tangerino, advogado criminalista e professor da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro)
A maioria das nulidades de um acordo desse tipo prejudicam apenas o colaborador. Se ele mentiu, omitiu dolosamente algo ou violou o sigilo, isso pode gerar a anulação dos termos do acordo, mas tudo que ele disse permanece nos autos do processo — exceto em caso de mentira — e poderá ser usado contra ele. O colaborador deixa de estar protegido pelo acordo, mas seu depoimento não perde a validade. As defesas dos corréus, se conseguirem a anulação da delação, a princípio não alteram a condição de seus clientes.
Isso muda se houver prova de que o acordo foi viciado na origem, que Cid foi nomeadamente convencido a celebrá-lo. Neste caso, os depoimentos perdem completamente a validade, porque gera uma nulidade para o Judiciário. Esse campo de hipóteses depende de que alguma das defesas consiga comprovar esse argumento de nulidade, e beneficiaria diretamente os corréus.
— Raquel Scalcon, professora de direito penal da FGV-SP (Fundação Getulio Vargas)
A colaboração é um contrato, que prevê cláusulas, dentre as quais a ideia de que não se pode mentir ou omitir. A participação de um colaborador não é afetada quando ele é condenado por um crime de outra ordem, um caso sem relação, por exemplo. Mas há uma questão de conexão entre os fatos. A possível mentira [de Cid] envolveria uma situação conexa ao processo com o qual ele está colaborando, o que consiste em uma oposição à função de auxiliar na realização mais efetiva da persecução penal. Se houver comprovação dos fatos revelados, haverá argumentos para questionamento e eventual anulação da delação.
Ainda que haja uma anulação, contudo, é preciso avaliar o que isso deriva no processo — ou seja, quais provas existem pelo conteúdo da colaboração. Quais outras provas seriam maculadas por essa anulação? Quais se tornariam ilícitas por derivação? Quanto do conjunto probatório estaria comprometido? São questões complexas, mas podem gerar outros desencadeamentos para o processo.