Como quem desafiasse a lei da gravidade, o presidente Jair Bolsonaro impôs a si próprio um laborioso e insuperável desafio: o de equilibrar uma garrafa de aguardente sobre a lateral menos espessa de um pacote de goiabada, disposto de lado e em pé – como uma peça de dominó – em cima de uma latinha de leite condensado. A estultice, de fazer corar Isaac Newton, não logrou êxito, por óbvio, mas rendeu risadas, algumas a denunciar o constrangimento dos presentes ao convescote – o já tradicional café da manhã das quintas-feiras no Salão Oeste do Palácio do Planalto que reuniu, na última semana, o presidente do Supremo, Dias Toffoli, o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni e parlamentares da bancada feminina no Congresso. Não seria o primeiro evento oficial em que o mandatário do País dispensaria a liturgia presidencial para perder-se em parvoíces. O jeitão despojado, desprovido dos salamaleques do poder, não reveste-se de originalidade. Pelo contrário. O ex-presidente Lula, do qual Bolsonaro orgulha-se de estar acomodado no extremo oposto, era useiro e vezeiro da prática – na maioria das vezes enxergada como virtude, diga-se. De fato, se o Brasil estivesse a mil maravilhas, economia de vento em popa, empregos aos borbotões, educação e saúde de qualidade, pouco interessaria como o presidente da República se porta nos salões do poder. Seria ele “a luz do baile”, como dizia Monteiro Lobato sobre Pedro II. Ocorre que vivemos um período dramático da vida nacional não só pelo que Bolsonaro herdou da era petista, mas pelo que tem deixado de fazer, seja por omissão, inapetência ou simplesmente ausência de compreensão da grandeza do cargo. Afinal já se avizinha o sexto mês de governo e até agora, como diziam nossos avós, “necas de pitibiriba”.

A história ensina

Durante a crise dos mísseis soviéticos em Cuba, em 1962, John F. Kennedy disse que governar é, acima de tudo, definir prioridades. Na ocasião, os Estados Unidos e a União Soviética estavam à beira de uma guerra nuclear. Era premente, portanto, uma solução negociada com os soviéticos para a retirada de mísseis nucleares de Cuba. Foi o que ocorreu, devido ao sentido de urgência e a capacidade do então presidente norte-americano de entender o que era fundamental naquele momento. A Bolsonaro parece faltar senso de prioridade. Na terça-feira 4, o presidente dirigiu-se pessoalmente ao Legislativo levando debaixo do braço um projeto que altera o Código de Trânsito. Para pior. O pacote de medidas vai no contra-pé do mundo: prevê menos sanções ou até mesmo a eliminação delas a motoristas imprudentes. Num País em que a violência nas pistas é estupefaciente, o presidente da República propõe acabar com o exame toxicológico para motoristas de ônibus e caminhões, o fim da multa para quem transportar criança sem cadeirinha ou rodar com farol apagado em rodovias e dobrar a pontuação máxima permitida na carteira de habilitação de 20 para 40. “Por mim, botaria 60”, ousou afirmar um dia depois. No mesmo momento em que Bolsonaro apresentava as propostas, o Congresso entabulava uma discussão sobre a providencial reforma da Previdência, sem a qual o País pode ir à bancarrota. Não sem razão, o presidente do colegiado que trata do tema, Marcelo Ramos, disparou: “Reclamam quando digo que o presidente Bolsonaro não tem noção do que é importante para o País. Mas, enquanto estamos num seminário sobre reforma, ele está vindo pra Câmara apresentar PL que trata de aumentar pontos na carteira de maus motoristas”. Há duas semanas, o presidente já havia atravessado a Praça dos Três Poderes para saudar um humorista. Ninguém entendeu. Na esteira do episódio, emitiu uma nota para lamentar a morte de um indivíduo que cometera suicídio após espancar brutalmente uma mulher com quem mantinha relações extraconjugais e suspeitava de gravidez. Implacável, a voz rouca das ruas, aos poucos, se apresenta. “Acho que o presidente está dando prioridade a coisas que não são necessárias agora. Fiquei esperando mais, e ele está me decepcionando”, lamentou em entrevista ao Estadão Luciana Leal, turismóloga, de 42 anos.

O presidente aprecia a ordem no sentido da segurança, mas falha quando o termo assume um conceito filosófico. Ordem são as coisas no lugar

No livro “Rompendo o cerco”, Ulysses Guimarães ensina que um estadista deve ser o arquiteto da esperança. Ele não pode ser “coruja que só pia agouro, nem cassandra de catástrofes”, dizia. São Lucas é o evangelista mais querido, lembra Ulysses, porque não apocalíptico e sim profeta da esperança, o poeta silvestre de “olhai os lírios do campo”. Bolsonaro foi eleito por 57 milhões de pessoas. Tornou-se, portanto, fiel depositário das imensas expectativas de um povo. Apesar dos registros mensais de queda de popularidade, o presidente ainda é dono de um capital político considerável. Como tal, ele jamais deveria contrapor à retração do PIB com um singelo e desalentador “já falei que não entendia de economia”. Ao se esquivar sobre um assunto de tamanha gravidade, e lançar luz sobre outros que não deveria merecer tanta importância, Bolsonaro claudica.

Na realidade – e essa é uma das razões da miséria de sua gestão até aqui –, o presidente, que aprecia a ordem no sentido da segurança, falha quando o termo assume um conceito filosófico. Tomás de Aquino dizia que ordem são as “coisas no lugar”. Para isso, é preciso ter capacidade de estabelecer prioridades. “Quem as confunde perde a noção de ordem. O governante deve discriminar o essencial e o urgente para praticá-los”, pontificava o Senhor Diretas. O presidente da República, por ora, não o faz. A desordem é a tônica atual. Perdido em questiúnculas, Bolsonaro deveria aprender mesmo com Ulysses, para quem a política não é o ofício da bagatela, nem a pragmática da ninharia. Afinal, “quem cuida de coisas pequenas acaba anão”.