Se Laerte não fosse real, seria preciso alguém muito criativo para criar uma personagem como ela. Uma das mais inovadoras artistas gráficas do País, ela teve a coragem de revolucionar seu trabalho e sua vida ao mesmo tempo, após décadas de sucesso. Depois de trinta anos de uma premiada carreira, Laerte abandonou seus personagens famosos, mudou o estilo e trocou o último bastião da identidade — o próprio gênero.

LANÇAMENTO “Manual do Minotauro”
Laerte
Cia das Letras
Preço: R$ 89

Essa nova fase, com mais de 1,5 mil tirinhas publicadas entre 2004 a 2015, estão no livro “Manual do Minotuauro”. No lugar dos populares Geraldão, Overman, Piratas do Tietê, Hugo e até Deus, a cartunista optou por figuras herméticas e sem nome. Ficou difícil definir sua linguagem: em vez do humor em “três tempos”, formato tradicional das tirinhas de jornal, com o arremate no quadrinho final, Laerte passou a publicar reflexões filosóficas e existencialistas. Para completar, veio a mudança de gênero: em 2010, começou a se identificar como mulher transgênero. “Senti, em sintonia com outras partes da minha vida, que meu trabalho estava chegando num ponto de virada”, afirma. “Achei que era possível fazer histórias e desenhos mais parecidos com o que eu fazia lá pelo fim da adolescência, antes de me tornar profissional, um tipo de expressão mais livre e audaciosa.” A artista, no entanto, descarta o caráter filosófico de sua obra: “Acho que me guio por uma ideia de poesia, mas posso estar errada”.

Larte fez parte de uma geração de cartunistas que incluía Angeli e Glauco — “Los 3 Amigos”, histórias que criavam em conjunto. Segundo ela, os colegas aprovaram as mudanças. Seu movimento dentro das identidades de gênero teve início junto com as mudanças no trabalho, mas a dinâmica foi diferente: “Só vim a testar e viver a transgeneridade em 2009. Em 2011 passei a viver publicamente no ‘modo feminino’, me expressando como mulher transgênero. O modo como isso mudou meu trabalho é impreciso. Continuo sendo a mesma pessoa, mas minhas ideias e sentimentos vão evoluindo em processos não muito lineares ou identificáveis.” Aos 70 anos, a cartunista não planeja nenhuma outra revolução na carreira — mas tampouco a descarta: “Não sei o que é possível movimentar, mas sinto que não há nenhuma fronteira fechada por perto.”