Como quadrilha usou veterinários para abastecer esquema de venda de droga

Homem foi preso em Campinas suspeito de ser o maior fornecedor de receitas de ketamina do País

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A ketamina é um anestésico para uso em humanos e animais, mas também aparece no mercado ilegal Foto: Pixabay

Um médico veterinário foi preso nesta quinta-feira, 4, em Campinas, no interior de São Paulo, suspeito de ser o maior fornecedor de receitas de ketamina, também chamada de cetamina, do País para o tráfico da substância. Uma investigação da Polícia Civil do Paraná indica que ele integraria uma quadrilha especializada em cooptar veterinários para conseguir o sedativo e depois transformá-lo em Special K, droga alucinógena para a venda, ou então usá-lo para “turbinar” outras substâncias, a exemplo da cocaína.

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A prisão do veterinário foi um desdobramento de uma operação realizada na quarta-feira, 3, que prendeu outras sete pessoas e cumpriu mandados de busca e apreensão em Curitiba e Fazenda Rio Grande (PR); Mogi das Cruzes, Itapira, Estiva Gerbi, Valinhos, Indaituba, Campinas e São José do Rio Preto (SP); Belo Horizonte (MG); Várzea Grande (MT); e Macaé (RJ). Os policiais apreenderam diversas caixas de ketamina, R$ 55 mil em espécie e uma arma de fogo.

“A gente está diante da maior organização criminosa já identificada até o momento no País que faz o tráfico de cetamina. Podem ter outras, mas ainda não estão mapeadas”, afirma ao Estadão a delegada Paula Christiane Brisola, que trabalha em Curitiba e comanda a investigação do caso, iniciada em maio deste ano após uma apreensão do medicamento no Paraná.

Dados do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), que auxiliou na operação, mostram que entre abril de 2021 e abril de 2025, o veterinário preso em Campinas teria prescrito receitas para a compra de 112,6 mil frascos de ketamina para a quadrilha. Segundo o órgão, o volume permitiria anestesiar 2,3 milhões de cães de porte médio ou 7 milhões de gatos.

“Cada ampola tem o valor oficial de mercado de R$ 130. Se foram efetivamente compradas legalmente, o valor é de cerca de R$ 15 milhões. Se pensarmos em venda no mercado ilegal, ele pode ter movimentado R$ 60 milhões por meio da comercialização desse medicamento para uso irregular fora de ambientes hospitalares”, explica a delegada.

A ketamina é um anestésico para uso em humanos e animais, mas também aparece no mercado ilegal por causa do consumo recreativo, como em festas. “Os usuários são, geralmente, jovens de classe um pouco mais elevada. É uma substância de valor um pouco mais alto, mas não chega a ser das mais caras”, conta Paula. Relatórios do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) descrevem o desvio de frascos veterinários como uma das principais rotas de abastecimento do uso ilícito. No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) classifica a substância como psicotrópico sujeito a controle especial, justamente pelo risco de comercialização irregular.

A venda de ketamina para uso em humanos é controlada pela Anvisa – e conta com mecanismos mais rígidos de fiscalização. Já a comercialização para uso veterinário depende de liberação no sistema do Mapa, mas não tem o mesmo tipo de monitoramento que a venda para uso em humanos.

Veterinários ganhavam R$ 2 mil

Além do veterinário preso, outros três profissionais foram identificados pela polícia e também serão indiciados no inquérito por associação ao tráfico de drogas, segundo a delegada do Paraná. O veterinário de Campinas, dono de uma clínica, seria o mais experiente deles. “Os outros profissionais cooptados são recém-formados, em geral pessoas de baixa renda. O grupo pagava R$ 2 mil por mês para eles emitirem as receitas. Inocentes não são, participaram da ação, mas não tinham consciência de como acontecia (o crime)”, afirma Paula.

Ela aponta que duas veterinárias identificadas na investigação se formaram neste ano e, um mês após obterem o diploma, já estariam trabalhando com o grupo. Uma delas, entre fevereiro e abril deste ano, teria solicitado autorização ao Mapa para a compra de 28 mil unidades de ketamina.

Esquema estruturado

A investigação da Polícia Civil do Paraná começou a partir de uma ação da Polícia Militar em 21 de maio deste ano, que resultou na apreensão de 1,1 mil unidades de ketamina. O material estava armazenado em uma casa no Bairro Alto, em Curitiba, alugada especificamente para a atividade do grupo.

Conforme a delegada, inicialmente os medicamentos tinham aparência de legalidade, pois tinham notas fiscais e prescrições regulares assinadas por veterinários. Porém, após análise, os policiais descobriram que a substância estava sendo comprada mediante pagamento em espécie com valores acima de R$ 100 mil. O grupo, que tinha funções bem estruturadas, fracionava o registro de compras em várias notas fiscais emitidas com diferença de minutos, o que levantou a suspeita de fins ilícitos. “Tinham uma rede de distribuição muito organizada desses produtos, além da parte de logística para o acesso a essas substâncias a partir da indústria”, afirma Paula.

A delegada explica também que foram cumpridos mandados de busca em nove estabelecimentos comerciais que faziam a captação e venda irregular da ketamina. “O Mapa verificou que as empresas não tinham quantidade muito expressiva da droga à disposição, mas, se fosse solicitado, eles faziam o mapeamento de outras distribuidoras e faziam a entrega”, conta. Ainda de acordo com Paula, o grupo fazia a captação de veterinários e da droga nos Estados de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Mato Grosso. Já a venda como droga alucinógena era feita em cidades do Paraná e de Santa Catarina.

O inquérito da investigação deverá ser concluído em até 30 dias. Os investigados serão indiciados pelos crimes de tráfico de drogas, associação para o tráfico e organização criminosa. “As prisões são temporárias e têm como objetivo a instrução do inquérito. Temos um material bem robusto e, com esses mandados que foram expedidos, vamos conseguir trazer mais elementos. A ideia é ampliar a investigação para persecução patrimonial. Eles têm movimentação financeira alta, então vamos descobrir onde está o núcleo financeiro da organização”, afirma Paula.

Os medicamentos apreendidos na ação de maio deste ano serão doados à Prefeitura de Curitiba. O repasse foi autorizado judicialmente e deve ocorrer no dia 11 de dezembro. A quantidade apreendida poderá viabilizar a castração de cerca de 24 mil animais de pequeno porte.