Mesmo estando aqui, a paulistana de classe média, a anos-luz do aprendizado sobre estratégia militar de Vladimir Putin na KGB, é possível destacar alguns pontos – que agora temos mais claros – sobre os preparativos feitos pelo presidente russo antes do ataque à Ucrânia. E, pelo que parece, poderá culminar em um novo desenho da geopolítica do planeta.

O presidente russo esperou momentos importantes para agir, política ou economicamente, envolvendo as principais lideranças mundiais. Joe Biden estava placidamente pensando no quê fazer com a alta da inflação em seu país e em sua reeleição, quando pulou da cadeira com um choque (ainda mais com Donald Trump chamando Putin de “gênio”, sarcasticamente).

Emmanuel Macron, presidente da França, se bandeou para os quatro cantos do mundo tentando garantir a paz – que, se fosse possível conseguir, lhe valeria um título de salvador da pátria antes das eleições de abril na França, onde também é candidato.

E Olaf Scholz, premier da Alemanha, teve de abrir mão de um segundo gasoduto que dobraria o fornecimento de gás (russo) a seu país. Torce agora para Putin não fechar a torneirinha do primeiro, porque seus concidadãos teriam de buscar o quê para se aquecerem no inverno? Carvão?

Com os três em arapucas pessoais, Putin já deixou pronto um plano financeiro próprio, porque esperava as sanções financeiras que começaram a ser implantadas, e o mais importante: deu as costas à Europa e se voltou para a China, assinando um documento crucial com Xi Jinping no início do mês, um pacto de apoio mútuo e irrestrito (leia-se comercial e militar), garantindo a venda aos parceiros chineses o gás que eventualmente os europeus recusarem. Do tabuleiro de xadrez, passa fluidamente para outro: o go, jogo chinês de 2.500 anos em que peças brancas e pretas procuram se cercar e se comer.

A OTAN, a aliança militar na Europa contra os russos, teoricamente perdeu seu papel depois do fim da Guerra Fria, mas seguiu avançando para o Leste e agora passa ao largo da Ucrânia (país não-membro). Como a União Européia, condena o ataque, mas visa aos interesses dos países membros (e suas economias e empresários) em primeiro lugar. Europe first, como diria Trump sobre os EUA. Assim, Putin abriu caminho para “conflitar” em outros lugares, como nos Bálcãs (na Bósnia, por exemplo) ou vizinhos de vizinhos, como a Lituânia, ou quem ele puser na fila. E a China, claro, já se arvorou e pode partir para cima de Taiwan, justamente um líder no setor tecnológico, que desenvolve e produz chips de última geração.

Putin se mostra anacrônico em um mundo onde relações comerciais e sistemas online importam bem mais do que fronteiras. Sonha com sua reencarnação de Nicolau I, ainda de antes da revolução comunista que formou a União Soviética (URSS), talvez com uma releitura do Império Austro-Húngaro: czar mão-de-ferro com pretensões de oligarca neoliberal. Delírio? De uns cinco anos para cá, não duvido de mais nada.