Já ficou claro que Vladimir Putin errou nos seus cálculos na invasão da Ucrânia. Achou que a iminência de um assalto em larga escala faria o governo de Volodymyr Zelensky fugir, a burocracia ucraniana se desmantelar e a população se render. Aconteceu o contrário. A população resistiu, o nacionalismo ucraniano aumentou e Zelensky se tornou um herói mundial.
Putin evitou usar a estratégia tradicional russa para ocupar e vencer seus inimigos: ataque maciço de artilharia e ocupação selvagem com grande destruição do território inimigo. Fez isso porque não quer despertar a reação de sua própria população: há conexões familiares e culturais entre a Ucrânia e a Rússia. E a Ucrânia exibe laços crescentes com a União Europeia e as democracias ocientais (esse é o verdadeiro pavor do autocrata russo). Putin hesita em transformar a Ucrânia em um cenário de terra arrasada, como a Rússia de Yeltsin fez em 1991 na Chechênia, que era um país muçulmano com poucos laços ocidentais. A dificuldade agora é bem maior.
No século XXI, Putin também não conseguirá provocar tragédias como a asfixia imposta por Stálin nos anos 1930, quando milhões de ucranianos morreram de inanição por não se submeterem aos comunistas – a chacina foi apoiada pela esquerda mundial, inclusive nos EUA, e foi uma das inspirações para George Orwell escrever “1984”.
Desde a Revolução Laranja (2004 e 2005) e os protestos de Maidan (2013 e 2014), os ucranianos mostraram que estão dispostos a se sacrificar para tirar o país do jugo tirânico e anacrônico da Rússia. Eles querem ingressar na União Europeia, aspiram a uma sociedade moderna e democrática. Não têm a mesma expertise histórica para lidar com impérios invasores que os afegãos demonstraram contra os britânicos e os próprios russos. Nem a mesma resiliência que os vietnamitas demonstraram contra os franceses e os americanos. Mas estão determinados, como os levantes nos últimos 20 anos demonstraram.
O documentário “Winter on Fire” (2015), que registra o levante de Maidan e está em exibição na Netflix, atesta que a resistência é baseada em uma união popular, fragmentada e enraizada em todo o território. Em um dos momentos simbólicos, uma igreja secular arregimentou a população contra a repressão ao tocar sinos que só haviam sido acionados no século XIII, contra invasores do Império Mongol. É contra esse tipo de memória que Putin precisará se deparar. Ele ainda tem mais tanques que os ucranianos e uma capacidade destrutiva incontestável, mas ao devastar o vizinho estará cavando sua própria cova.