Dez dias depois do primeiro turno que levou Bolsonaro e Haddad para o segundo turno, e fez, ao mesmo tempo, com que o PSDB fosse arrastado por um “tusnami” eleitoral, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, 87 anos, faz uma análise do que a disputa entre o PSL e o PT representará para o País. E ele não está otimista. “Existe a chance de a crise institucional e a paralisia que lhe segue continuarem. A observação vale para as duas hipóteses, a de vencer Bolsonaro ou o PT”. Mas ele espera que a crise brasileira “que chegou ao fundo do poço, não tenha um alçapão oculto”. Não acredita, porém, que Bolsonaro se mova por um sentimento anticonstitucional”, embora deseje que as forças políticas democráticas detenham “o bolsonarismo se este quiser pôr em prática o autoritarismo”. Fernando Henrique diz, em entrevista à ISTOÉ, que não deverá apoiar Bolsonaro e nem Haddad. “Tanto o PT quanto as forças que sustentam Bolsonaro têm em seu meio uma visão antiliberal e em alguns casos antidemocrática”. Ele desmente que tenha deixado “uma porta aberta” para apoiar Haddad. “A porta com o PT não está aberta. As dobradiças estão enferrujadas e a fechadura emperrada”.

O senhor já vinha alertando há um ano sobre a necessidade de união do centro, pois havia o risco da polarização de radicais de esquerda e direita, como acontece agora entre Haddad e Bolsonaro. Por que o centro não conseguiu se unir?

Porque os partidos que podem ser chamados propriamente de “centristas” (não confundir com o dito “centrão”), não perceberam que estavam diante de um momento novo da vida política e social do Brasil, em que as velhas estruturas partidárias perdiam peso, as redes sociais passavam a contar mais que as mídias tradicionais e havia medo do futuro, frustração com a crise e indignação com a corrupção. Estamos assistindo a um verdadeiro tsunami que levou de roldão os partidos.

O candidato do PSDB, Geraldo Alckmin, não conseguiu, em momento algum da campanha, passar dos 10% nas pesquisas e acabou com um desempenho pífio, em torno de 4%, uma tragédia eleitoral. Por que ele não decolou?

Alckmin não decolou, assim como não decolaria qualquer outro do PSDB que não fosse visto como expressão do novo “momento” da vida brasileira. De que valeram, nessas eleições, o tempo de TV, as alianças partidárias e tudo mais, diante do discurso bem orquestrado nas redes “contra tudo o que aí está”?

Alckmin tinha quase a metade do tempo na TV e nove partidos em seu arco de alianças. O senhor acha que ele errou na formulação da campanha e que ele não deveria ter se aliado a partidos da chamada “velha política”, como DEM, PP, PR, PTB e outros?

É fácil ser engenheiro de obras acabadas: o engano maior foi o de não havermos percebido que vivemos em “outra era”. E não foi engano só de Alckmin e do PSDB. No livro que escrevi recentemente sobre a “Crise e Reinvenção da Política no Brasil” estão expostos os argumentos nos quais baseio esta opinião. Falar e escrever, entretanto, não basta: é preciso que as pessoas queiram ouvir. O eleitorado brasileiro não queria ouvir a voz da razão. Preferiu extremar-se. Ou melhor, pendeu para um dos polos.

Desde o início, o senhor pedia que o PSDB lançasse um nome novo e chegou a sugerir João Doria e, depois, o apresentador de TV, Luciano Huck. O senhor acha que o candidato do PSDB acabou identificado como integrante da velha política?

Que era necessário buscar alguém mais contemporâneo, ou seja, que lidasse há mais tempo com as redes de comunicação e expressasse o fim de um ciclo, era claro. Entretanto, sempre é necessário avaliar se essa pessoa compartilha dos valores da democracia. Sem esta convergência, há risco de gatos passarem por lebres. Espero que o Luciano Huck, que tem crenças políticas que compartilho, não só as mantenha, mas não desista de lutar publicamente por elas.

O senhor acha que, se o partido tivesse lhe ouvido e lançado outro candidato para presidente, o resultado teria sido diferente?

Do jeito que as coisas estão colocadas, não acredito que mudar de candidato fosse a solução. Mudar para colocar quem? A derrocada faz parte de um processo de mudança que nos obrigará a reavaliar partidos, instrumentos de ação e muita coisa mais.

Denúncias envolvendo alguns tucanos na reta final, inclusive com prisões como as de Beto Richa, no Paraná, Marconi Perillo, em Goiás, e Reinaldo Azambuja, no Mato Grosso do Sul, afetaram o desempenho da campanha tucana?

Sem dúvida, reforçaram a percepção de que também estes políticos do PSDB tinham culpa no cartório. Mas, Lula, preso e condenado, continua com apoio eleitoral… Isso mostra que o eleitor do PSDB tem outro tipo de exigência. Se quiser recuperá-lo, o partido precisa entender isso claramente.

O senhor acha que qualquer um desses dois caminhos — Jair Bolsonaro e Fernando Haddad — representam um retrocesso?

No caso, não se está repetindo a história: o autoritarismo militar dos anos sessenta tinha a cevá-lo a Guerra Fria e o anticomunismo. Pensar que repetiremos isso é anacronismo. Não foram as Forças Armadas que propuseram Bolsonaro. Também não creio que as mova um sentimento anticonstitucional, embora possam beneficiar-se do resultado eleitoral e voltar a ter maior presença na vida nacional. Haddad, por sua vez, é pessoalmente um homem honesto. Tanto o PT quanto as forças que sustentam Bolsonaro têm em seu meio uma visão antiliberal, em alguns casos antidemocrática. O que acontecerá vai depender de como reajamos após as eleições, com que visão e com que alianças. Se o petismo mantiver o desejo de formar uma frente unida pela Constituição, aí sim fará na prática uma autocrítica, sem objetivos eleitorais. Não há que desistir do Brasil

O senhor disse recentemente que Bolsonaro representa tudo o que o senhor não gosta e que, portanto, a possibilidade de apoiá-lo no segundo turno é nula. E admite ter uma porta aberta com o PT. Por que Bolsonaro é mais nocivo do que o PT?

Por isso mesmo disse que vejo um muro diante de um dos candidatos, enquanto diante de outro há uma porta, mas não aberta. As dobradiças estão enferrujadas e a fechadura emperrada. A porta está fechada por dentro. Só quem a fechou poderia abri-la em um esforço futuro de concertação no novo cenário político que se afigura. Com fatos e comportamentos, não apenas com apelos eleitorais.

Quando o senhor diz que Bolsonaro está excluído do seu processo de decisão de voto no segundo turno é porque o ex-capitão do Exército chegou a dizer, no passado, que o senhor merecia ser fuzilado?

Não. Ele já disse que a afirmação foi retórica. Meu avô, que na época era tenente, diante de várias perguntas de Benjamin Constant sobre uma possível resistência do imperador, disse que na hipótese de resistência o Imperador deveria ser fuzilado. Mais tarde, já general, apoiou em 1922 o movimento dos “tenentes” que lutavam contra as oligarquias politicas. Quando Bolsonaro era deputado e teve o arroubo mencionado eu era Presidente e contive as tentativas de responsabilizá-lo. Não sou propenso a pensar e agir movido por ressentimentos pessoais.

Um novo governo petista, com um Congresso de maioria conservadora, como o que foi eleito no primeiro turno, não poderá arrastar o País na crise por mais quatro anos?

Existe a chance de a crise institucional e a paralisia que lhe segue continuarem. A observação vale para as duas hipóteses, a de vencer Bolsonaro ou o PT.

O ex-ministro José Dirceu disse que, se vencer, o PT não ganhará a eleição, mas o poder. O senhor vê risco de um novo governo petista caminhar para um processo totalitário, com o controle da imprensa e uma venezuelização do Brasil?

Não foi o que prevaleceu quando o PT esteve no poder. Do mesmo modo, não há porque imaginar que as forças sociais, econômicas e políticas democráticas serão incapazes de deter o bolsonarismo, se este quiser por em prática o autoritarismo.

O senhor acha que estamos entre a cruz e a espada? Ou seja, entre a possibilidade de um governo autoritário, identificado com o militarismo, e um governo que foi tolerante com a corrupção e desmandos administrativos?

Espero que o fundo poço onde chegamos não tenha um alçapão oculto.

Como o senhor viu a polarização da campanha que levou a uma candidatura sendo manobrada de dentro da cadeia, enquanto o outro candidato passou a comandar sua campanha de dentro de um hospital. O senhor acha que isso é resultado da profunda crise política brasileira?

Não dá para garantir que a crise atingiu seu ápice. Espero que as forças mais sensatas voltem a predominar.

Analistas dizem que há risco de Haddad, caso se eleja, vir a conceder indulto para Lula e permitir que o ex-presidente volte a governar o Brasil de fato. O senhor acha que corremos esse risco?

Só se o objetivo for aumentar a tensão e a separação entre brasileiros. Conceder indulto a uma só pessoa? E os outros, serão também indultados? Isso é irrealista nas condições atuais. Ou se respeita a Justiça ou a lei não contém os mais radicais.

O PSDB nacional decidiu ficar neutro entre Bolsonaro e Haddad. Quando o senhor diz que não apoiará Bolsonaro, pressupõe que vai ficar com Haddad, é isso?

Em momento algum eu disse que ficaria com a candidatura Haddad, embora haja dito que com o Bolsonaro não ficaria.

O PSDB sofreu uma grande derrota. O senhor acha que é o momento do PSDB ser refundado, rediscutido, buscar novas lideranças?

Reitero: não é só o PSDB. Os partidos e líderes precisam de uma nova arrumação.