Recorrentes no futebol brasileiro, os protestos de torcidas organizadas não deram trégua mesmo na pandemia do novo coronavírus. Insatisfeitos, torcedores de São Paulo, Corinthians e Cruzeiro manifestaram sua ira contra jogadores e dirigentes recentemente. No caso do time mineiro, houve até invasão no CT Toca da Raposa II e a polícia teve de ser chamada para conter os invasores. Engana-se quem pensa que os comportamentos intimidatórios são frutos apenas dos resultados ruins dentro de campo das equipes e das gestões irresponsáveis dos dirigentes.

Segundo pesquisadores em violência no futebol ouvidos pelo Estadão, a relação de distanciamento entre os clubes e os torcedores e a ausência de diálogo ajudam a explicar o comportamento ameaçador e violento registrado em grande parte dos protestos no futebol brasileiro.

Para a professora titular da Unicamp e autora do livro “Futebol e Violência”, Heloísa Reis, os torcedores não são bem tratados pelos clubes e essa relação distante, em que eles não são colocados como protagonistas, é determinante para a eclosão de manifestações conflituosas, com críticas direcionadas até a jogadores considerados ídolos, caso do goleiro Cássio, no Corinthians.

“As relações são muito perversas entre dirigentes, jogadores e torcedores, que querem ser protagonistas. Esse distanciamento e o fato de o torcedor não ser visto como protagonista do espetáculo acaba frustrando os jovens e fazendo com que eles aumentem a agressividade e se empoderem com a ideia de que a violência é o caminho para intimidar os jogadores”, elucida Heloísa, que é pesquisadora na área de violência no futebol há 25 anos.

“O que acontece hoje é que deixa-se a panela de pressão ferver, ninguém recebe os torcedores para um diálogo e continua o pensamento de invadir, bater, quebrar. O autoritarismo não envereda por outro caminho que não seja o da violência, na perspectiva desses jovens frustrados. Não há um processo educativo, civilizado, de enfrentamento a esse problema”, reflete a pesquisadora, especialista em Sociologia do Esporte.

Outro especialista em violência e torcidas organizadas, o professor de Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense (UFF) Rodrigo Monteiro discursa sobre o perfil do torcedor agressivo, que é intolerante e parte para o confronto físico em muitas ocasiões. “Existe um tipo de torcedor que se entende como um homem que constrói uma identidade que o leva à briga, ao confronto violento. Ele está muito calcado numa perspectiva muito violenta que justifica as agressões física contra jogadores e outros torcedores. Ele se vê como um sujeito empoderado e forte”, comenta.

Heloísa destaca que medidas punitivas, como a implementação da torcida única em jogos no Estado de São Paulo, não vão surtir efeito positivo para a redução da violência. Em sua visão, a saída para mitigar esse problema passa por um processo educativo e de acolhimento aos torcedores, algo semelhante ao que foi feito em parte da Europa, onde houve a diminuição de brigas e mortes relacionadas ao futebol.

“A diminuição da violência no futebol da Europa está relacionada com os projetos do clube de serem parceiros das torcidas. Lá, eles não são inimigos ou usados apenas quando interessa”, pontua. “Se houver relações de parcerias, os torcedores seriam bem-vistos entre os dirigentes e jogadores e isso também intimidaria os protestos violentos, com ameaças. Se houver uma relação saudável, a probabilidade de haver violência é menor”, acrescenta a professora.

E se essa violência arraigada no futebol no Brasil não for combatida, a tendência é de que o interesse pela modalidade diminua ao ponto de, no futuro, o público nos estádios ser ainda menor.

“Com os preços de ingressos tão altos, já existe uma tendência de diminuir a presença de público. E agora, a gente corre o risco de desestimular os torcedores e, além disso, não criarmos novos torcedores. O torcedor do futuro vai morrendo”, analisa Heloísa. “Os dirigentes no Brasil têm uma visão muito míope do que é o futebol. Pode haver um fracasso por conta de decisões tomadas agora”.