As manifestações contra o aumento das tarifas de ônibus que marcaram junho de 2013 completam 10 anos e o que começou como protestos focalizados no aumento da passagem em São Paulo acabou se alastrando pelo Brasil e incorporando uma série de pautas, como saúde e educação públicas de qualidade.

Embora o legado de 2013 seja controverso, gerando interpretações críticas e apaixonadas, no campo das políticas públicas de transporte é impossível negar que esse episódio influenciou cidades a implementarem políticas de tarifa zero pelo País. Para Daniel Caribé, doutor em arquitetura e urbanismo e coordenador do Observatório da Mobilidade de Salvador, o grande papel das mobilizações daquele ano foi fazer com que os governantes passassem a levar a sério a mobilidade urbana, mudando a Constituição em 2015 para criar o direito social ao transporte. “As mobilizações de 2013 desmistificaram a tarifa zero e colocaram a bandeira no centro do debate escancarando as portas para que novas soluções emergissem”, afirma.

+ ‘2013 marcou o fim da Nova República’, diz filósofo sobre Jornadas de Junho

+ 10 anos de junho de 2013: a cronologia do mês que mudou o Brasil

O que é a tarifa zero?

A tarifa zero ou passe livre é uma política pública que prevê o uso do transporte público sem cobrança de tarifa do usuário final. Nesse modelo, o sistema é financiado pelo orçamento do município (principal fonte), estado ou União com fontes de recursos que variam a partir do modelo adotado por cada cidade.

Origem da discussão

No Brasil, a primeira proposta de passe livre foi feita durante o mandato de Luiza Erundina (na época, do PT) na Prefeitura de São Paulo (1989 a 1992). A ideia, porém, não teve apoio legislativo municipal. Em 1991, o então vereador Eduardo Suplicy (PT) propôs um plebiscito para tratar da questão, que foi barrado na Comissão de Constituição e Justiça da Casa.

“Existia uma série de lutas pela redução de passagem. Em 2003 teve em Salvador, em 2004 em Florianópolis, quando conseguiram a redução da passagem, e a partir dos comitês pelo passe livre que existiam pelo Brasil se forma o Movimento Passe Livre (MPL). Focamos especificamente na questão do transporte público por entendermos que outros grupos e agremiações partidárias viam a pauta apenas de maneira utilitária. Acreditávamos que para a luta pelo transporte avançar era necessário ter um movimento social voltado para isso”, explica Lucas Monteiro, professor de História e ex-militante do MPL.

Com as manifestações de 2013, iniciadas pelo MPL, a tarifa zero voltou a ser tema de discussão e acabou tornando-se política pública na gestão de Fernando Haddad (PT) como prefeito de São Paulo, quando foi criada a gratuidade para estudantes de baixa renda e de escolas públicas. A medida, entretanto, sofreu restrições nos anos posteriores nas administrações de João Doria (então no PSDB), que restringiu o número de viagens, e de Bruno Covas (PSDB), que extinguiu a gratuidade para idosos de 60 a 64 anos, retomada neste ano pelo atual prefeito Ricardo Nunes, embora esteja agora disponível apenas para idosos de baixa renda.

A primeira adoção em larga escala da tarifa zero no Brasil aconteceu no segundo turno das eleições presidenciais de 2022. No dia da votação, centenas de cidades brasileiras deixaram de cobrar passagem nos ônibus e trens para facilitar o acesso dos eleitores às urnas.

Cidades com passe livre no Brasil

Nos últimos anos, várias cidades do País vêm adotando políticas de tarifa zero. Atualmente, o Brasil possui 81 cidades com passe livre conforme levantamento da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU). A maioria delas é de cidades pequenas e médias. Um dos exemplos é Caucaia, segundo município mais populoso do Ceará, com 369 mil habitantes.

• Em 70 cidades, a tarifa zero abrange todo o sistema durante todos os dias da semana;

• Em 6, a tarifa zero abrange todo o sistema somente em dias específicos da semana;

• Nas 5 demais, a tarifa zero abrange parcialmente o sistema durante todos os dias da semana.

Ao menos quatro capitais analisam a adoção da gratuidade em seus sistemas de transporte: São Paulo, Cuiabá, Fortaleza e Palmas, segundo pesquisa da área de mobilidade urbana do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).

Desde outubro de 2021, São Luís, no Maranhão, possui um projeto-piloto chamado “Expresso do Trabalhador”, que oferece passagem grauita para uma região específica da cidade e para trabalhadores do comércio após às 21h. Florianópolis, em Santa Catarina, disponibiliza ônibus de graça no último domingo de cada mês e, em dezembro e janeiro, a gratuidade foi ampliada para todos os finais de semana. Por sua vez, Maceió, em Alagoas, oferece a gratuidade apenas aos domingos no programa “Domingo é Livre”.

A cidade de São Paulo está analisando a possibilidade de implantar a tarifa zero no transporte coletivo e para isso está realizando um estudo sobre a viabilidade jurídica, financeira e econômica da política. O estudo é responsabilidade da SPTrans, órgão gestor do transporte por ônibus. Questionada pela IstoÉ sobre os resultados do estudo até agora, a SPTrans respondeu: “A SPTrans, a pedido do prefeito Ricardo Nunes, está liderando o estudo que estará à disposição para conhecimento público assim que concluído. Não há detalhes disponíveis para divulgação no momento”.

Como se forma a tarifa?

Para entender como funciona a tarifa zero, é preciso antes saber como se formam os custos do sistema de transporte. Existem dois tipos de tarifa: a de remuneração e a pública. A primeira é aquela que visa cobrir os custos de operação das empresas operadoras de transporte público e inclui todos os insumos, como óleo diesel, pneus, ônibus e a mão de obra, que representa a maior parte desses custos.

A segunda é a tarifa efetivamente cobrada dos passageiros nos ônibus, trens e metrôs. Portanto, se o preço da tarifa pública, cobrada dos usuários, for menor do que a de remuneração, a Prefeitura precisará cobrir essa diferença com recursos extra tarifários.

No Brasil, a maioria das cidades cobrem os custos de operação com a própria tarifa dos ônibus, mas cidades como São Paulo dão subsídios para as empresas para evitar o aumento do preço das passagens. Também pode haver uma participação dos estados nesses recursos, mas por enquanto ela tem sido tímida, cabendo a cada cidade bancar o seu sistema.

Para 2023, a SPTrans prevê que a maior parte do custo do transporte coletivo municipal seja bancada pela Prefeitura. A estimativa é que o valor arrecadado na tarifa se mantenha em cerca de R$ 5 bilhões, enquanto R$ 7,4 bilhões precisarão ser subsidiados pelo município, embora o valor proposto no orçamento seja metade.

Pagamento por quilômetro rodado ou por passageiro?

Outra questão que deve ser compreendida para calcular o custo do serviço é se a Prefeitura pagará as empresas prestadoras de serviço por número de passageiros transportados ou por quilômetro rodado.

“Na medida em que ela considera a variável de passageiros transportados, ela inclui um fator de desempenho, ou seja, além dos quilômetros rodados existe uma preocupação com a quantidade de usuários transportados porque a empresa operadora seria remunerada por essa quantidade de passageiros”, afirma Marcos Bicalho, diretor de gestão da NTU.

No entanto, a opção por passageiro pode gerar problemas de oferta do serviço. “Quando se paga por passageiro transportado, há um incentivo para a oferta de um serviço precário e ineficiente. Por exemplo: as empresas são incentivadas a superlotar os ônibus ou a cortar linhas não lucrativas, o que leva também à demissão de rodoviários. Ora, os territórios geralmente afetados pelo corte de linhas são os mais pobres ou periféricos, aumentando aí a desigualdade e a exclusão social. Na prática, as empresas passam a ser as planejadoras das linhas e a dizer onde deve ou não ter ônibus, com qual frequência e qual a qualidade dos equipamentos oferecidos”, explica Caribé.

Já quando as prefeituras optam pelo pagamento por quilômetro rodado, ela passa a focar na oferta do serviço. “Quando passamos a pagar pelo custo da operação ou por quilômetro rodado, a empresa vai ofertar o serviço na quantidade e especificações determinados pela contratante, no caso o poder público. Pouco importa a ela se o ônibus anda vazio ou cheio porque ela vai ganhar do mesmo jeito”, diz o coordenador do Observatório da Mobilidade de Salvador.

Segundo Bicalho, o caminho que vem sendo usado por diversas cidades é adotar um modelo misto: uma parte do serviço é remunerada por quilômetro rodado e ela se complementa com o número de passageiros transportados.

Principais obstáculos à tarifa zero

O principal obstáculo para a implementação do passe livre está na obtenção dos recursos necessários. Como na maioria das cidades brasileiras a tarifa é a única responsável pela cobertura dos custos, é preciso pensar em maneiras de cobrir essas despesas. “Na medida em que você zera essa tarifa, não existem mais receitas tarifárias a considerar para pagar os custos do serviços e aí há a necessidade de usar recursos orçamentários para bancar essa nova política pública”, afirma o diretor da NTU.

Uma questão que as cidades devem levar em conta ao implantarem o passe livre é o provável aumento da demanda, já que, sendo a passagem gratuita, a tendência é que o número de passageiros que usam o sistema de transporte público aumente. Em Maricá, no Rio de Janeiro, por exemplo, a demanda cresceu seis vezes após a criação do serviço, enquanto em Caucaia, no Ceará, a quantidade de pessoas utilizando o transporte público cresceu mais de quatro vezes.

“Toda cidade que implementou a tarifa zero teve aumento de passageiros nos sistemas de transporte e se existe aumento de pessoas usando o serviço é porque existe uma demanda reprimida de indivíduos que não usavam antes porque não tinham acesso. Sendo assim, não me parece que seja lógico que as pessoas deixem de ter acesso a um direito social previsto na Constituição por causa de uma barreira tarifaria”, afirma o ex-militante do MPL.

De acordo com Caribé, o aumento da demanda aumenta o custo de operação, mas esse acréscimo não é proporcional. “O sistema de transporte é basicamente custo fixo, não é significativo o incremento de custo por levar um passageiro a mais. Além disso, boa parte das linhas anda relativamente vazia na maior parte do dia e superlotada nos horários de pico. Como a tarifa zero vem para suprir uma demanda reprimida, que normalmente está ligada às atividades de lazer, cultura, compras, ida a médicos ou procura de emprego, esses deslocamentos costumam ser feitos nos horários onde há capacidade ociosa”, afirma.

Ele defende que, ao se implementar a gratuidade do serviço, os custos por passageiro caem significativamente apesar do aumento significativo do número de usuários. “Esse custo pode cair ainda mais com o aumento da eficiência do sistema, a exemplo da adoção de vias exclusivas para ônibus. A experiência das pequenas e médias cidades brasileiras vem mostrando que os custos da tarifa zero são bem menores do que imaginávamos”, diz.

Modelos de financiamento

Com o fim dos recursos tarifárias ao se adotar o passe livre, faz-se necessário buscar maneiras de viabilizar o serviço a partir dos orçamentos públicos. “Os recursos têm que vir de diversas fontes. Precisamos redesenhar o vale-transporte, por exemplo. Ele foi muito importante para sustentar os transportes coletivos nas décadas anteriores, mas as relações de trabalho mudaram muito e o modelo atual torna ainda mais sofrida a vida dos trabalhadores informais e precários, exatamente o público que mais precisa de um sistema de transportes coletivos acessível. A depender da amplitude dessa solução, já seria suficiente para garantir o financiamento”, afirma Caribé.

Segundo o doutor em arquitetura e urbanismo, é possível que governos municipais cobrem taxas de uso das vias pelos usuários dos automóveis, mas essa medida só deveria ser adotada quando as cidades tivessem bons sistemas de transportes coletivo em funcionamento. Ele chama a atenção para a necessidade de participação dos estados e da União no financiamento do transporte público. “Precisamos também criar fundos de mobilidade urbana com recursos próprios e que a mobilidade urbana entre nos orçamentos estaduais e federal, assim como estão nos municipais”.

As soluções encontradas pelas cidades brasileiras refletem essa variedade de possibilidades para o financiamento do serviço. Em Vargem Grande Paulista, na Grande São Paulo, onde a prefeitura implantou a gratuidade em 2019, criou-se um modelo em que o serviço é financiado por meio de um fundo de transporte, cujas principais receitas são uma taxa paga pelas empresas locais no lugar do vale-transporte (de R$ 39,20 mensais por funcionário), além de publicidade nos ônibus, locação de lojas nos terminais e 30% do valor das multas de trânsito. De acordo com a administração municipal, a medida estimulou o comércio local, reduziu as viagens dos moradores para cidades vizinhas e incentivou a contratação de mão de obra local.

Por sua vez, Maricá, cidade da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, possui um orçamento robusto oriundo dos royalties do petróleo. Esse fato permitiu que o município viabilizasse os ônibus gratuitos para a população.

Já em Caucaia, segundo cidade mais populosa do Ceará, a administração decidiu arcar com a tarifa zero com recursos do orçamento regular da prefeitura. O programa, chamado de “Bora de Graça”, foi criado em 2021 e consome cerca de 3% do orçamento municipal, sendo a remuneração à empresa prestadora por quilômetro rodado.

Benefícios colaterais da tarifa zero

Se o passe livre permite que a população usufrua melhor da cidade ao permitir a sua locomoção por ela de forma gratuita, o serviço produz ainda bons resultados em diversos setores da economia.

“As cidades que implantaram a tarifa zero têm relatado um aumento do gasto no comércio e, consequentemente, o aumento da arrecadação de tributos tanto do ICMS quanto do ISS. É natural que isso ocorra porque se a população aplicava determinado recurso para o transporte e ela para de gastar, ela cria uma poupança que pode utilizar de outras formas. Temos relatos inclusive de que o aumento do volume de comércio possibilitou o pagamento total dos custos de serviço em função do aumento da arrecadação dos tributos públicos”, afirma Bicalho.

“São inúmeras as externalidades positivas. Os gastos com contratação do trabalhador formal diminui, pois não é preciso mais pagar o vale transporte. É uma redução de custos significativa até para as prefeituras”, diz Caribé.

Outras vantagens da adoção do sistema consistem na volta da utilização de serviços de saúde por parte da população e na maior frequência às escolas e universidades. Há também o ganho de socialização diante da possibilidade de visita a um parente que mora em outro bairro ou de  participar de uma atividade de lazer, como ir ao estádio ou parque. “Tudo isso tem impacto na diminuição da violência também. O serviço também traz ganhos ambientais e de saúde coletiva devido à diminuição da poluição e das mortes no trânsito”, complementa o doutor.

Projetos de lei no Congresso

O tema foi discutido pela equipe de transição do governo Lula (PT) e é o foco de, pelo menos, um projeto de lei e uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) na Câmara dos Deputados, que buscam transformar a tarifa zero em um programa nacional.

O PL 1280/2023, de autoria do deputado federal Jilmar Tatto (PT), propõe a criação do Programa Tarifa Zero, com modelo de financiamento semelhante ao de Vargem Grande Paulista. Segundo o projeto, a adesão dos municípios seria voluntária e os empresários locais trocariam o pagamento do vale-transporte pela contribuição a um fundo municipal que subsidiaria a gratuidade do transporte, limitada, entretanto, apenas aos trabalhadores.

Já a PEC 25/2023, de autoria da deputada federal Luiza Erundina (PSOL) e de vários outros deputados, é mais ampla e estabelece a criação de um Sistema Único de Mobilidade, universal e gratuito, similar ao Sistema Único de Saúde (SUS). O projeto visa garantir a gratuidade nos transportes por meio de um modelo de responsabilidade compartilhada entre governo federal, estados e municípios.

Caribé destaca a importância da criação do sistema único para a efetivação do direito social ao transporte. “Os municípios brasileiros estão falidos e têm dificuldade de encontrar alternativas para subsidiar mais um direito social. É preciso, portanto, dividir as responsabilidades com os estados e governo federal. É basicamente esse o grande rearranjo que a proposta do Sistema Único propõe. Eu diria que aqui o grande obstáculo é corresponsabilizar todos os entes federativos na realização desse direito”, explica.

Nas cidades em que a tarifa zero foi adotada, é perceptível o sentimento de pertencimento e apropriação por parte das próprias populações locais em relação à gratuidade. “Onde há a tarifa zero, a população abraça a política e se orgulha dela. Não há vandalismo, não há rejeição. O difícil é tirar depois de adotá-la”, conclui Caribé.