Chegou ao fim, depois de dez anos, o Projeto Cérebro Humano (HBP na sigla em inglês) – uma das maiores iniciativas de pesquisa já financiadas pela União Europeia. O projeto envolveu cerca de 500 cientistas e custou 600 milhões de euros (algo em torno de R$ 3 bilhões).

O objetivo original, que era para lá de audacioso, não foi alcançado: conseguir recriar em computador um modelo completo do cérebro humano. Mas cientistas apontam algumas conquistas importantes.

Durante todo esse tempo, cientistas que participaram do projeto publicaram diversos de estudos e fizeram avanços significativos na neurociência, como criar mapas detalhados em 3D de pelo menos 200 regiões do cérebro, desenvolver implantes para tratar a cegueira e usar supercomputadores para modelar funções como a memória e a consciência, garantindo avanços nos tratamentos para diversas condições.

O projeto, no entanto, não conseguiu cumprir a promessa de simular a totalidade do cérebro humano – um objetivo que, de cara, parecia mesmo impossível para muitos cientistas. O projeto mudou de direção várias vezes e os seus resultados científicos acabaram sendo muito “fragmentados”, nas palavras de Yves Frégnac, um dos cientistas participantes. Em sua análise, o projeto não alcançou uma compreensão abrangente e original do cérebro: “Eu não vejo o cérebro; vejo partes do cérebro”, disse Frégnac em entrevista à revista Nature.

“Esse objetivo de simular o cérebro humano no computador era muito ambicioso, impossível dentro desse espaço de tempo de dez anos”, afirmou o neurocientista Stevens Rehen, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Instituto D’or de Pesquisa (Idor). “Foram muitos progressos significativos (mapeamento de regiões cerebrais, implantes neurais), mas faltou foco e integração entre as partes, sobraram fragmentação e contribuições científicas importantes, mas desconexas.”

Já no primeiro ano, houve problemas. O fundador e ex-diretor do projeto, o neurocientista Henry Markram, do Instituto Suíço de Tecnologia, em Lausanne, disse que o HBP seria capaz de reconstruir e simular o cérebro humano em nível celular em dez anos. De cara, a promessa levantou muito ceticismo entre especialistas, mas, certamente, foi fundamental para que o projeto recebesse boa parte do seu financiamento.

Como disse o neurocientista Timothy O´Leary, da Universidade de Cambridge, em entrevista à Nature, “não está claro se o HBP teria conseguido todo esse financiamento sem algum tipo de objetivo ridiculamente ambicioso”.

O neurocientista Roberto Lent, professor emérito da UFRJ e pesquisador do Idor, concorda com o colega. “São 86 bilhões de neurônios no cérebro, são dez mil sinapses por neurônios, resultando num total de 860 trilhões de conexões que mudam a todo momento em função do ambiente”, enumerou Lent. “Desde o começo me pareceu um objetivo inalcançável diante da tecnologia disponível. Mas essa ambição foi vendida para os financiadores e eles conseguiram muito dinheiro. Como não entregaram a promessa original, começaram a alterar os objetivos.”

De fato, já em 2014, membros do comitê executivo do projeto decidiram alterar parte dos objetivos, eliminando todo um campo de pesquisa em neurociência cognitiva. Com isso, 18 laboratórios abandonaram o projeto. Disputas sobre verbas levaram cerca de 150 participantes a assinarem uma carta de protesto, pedindo à Comissão Europeia para reconsiderar as propostas do projeto para uma segunda rodada de financiamento.

Foi criado então um conselho independente de especialistas para avaliar como o projeto estava sendo tocado e para revisar seus objetivos científicos. O comitê recomendou que o HBP deveria reavaliar e articular melhor seus objetivos científicos e reintegrar a neurociência cognitiva aos temas de pesquisa. Um novo comitê executivo foi criado, dessa vez com mais pessoas.

Apesar dos problemas, o projeto alcançou alguns objetivos importantes. Desenvolvendo e combinando mapas em 3D de cerca de 200 regiões do córtex e de outras estruturas mais profundas, os cientistas do HBP conseguiram criar um Atlas do Cérebro Humano, que apresenta como o cérebro se organiza nos mais diferentes níveis, desde sua arquitetura celular e molecular até seus módulos funcionais e conectividade.

Com o atlas, os cientistas conseguiram identificar seis regiões do cérebro previamente desconhecidas, que contribuem para a memória, a linguagem, a atenção e o processamento de música.

Eles também conseguiram desenvolver um algoritmo capaz de construir modelos de algumas regiões do cérebro a partir de imagens microscópicas. Usando essa ferramenta, eles conseguiram criar um mapa detalhado de uma região do hipocampo, uma área importante para a memória. O mapa contém cerca de cinco milhões de neurônios e 40 bilhões de sinapses.

O HBP também conseguiu traduzir algumas de suas descobertas em aplicações clínicas, personalizando modelos do cérebro para aprimorar terapias para epilepsia e Parkinson.

“Houve muitos resultados interessantes”, afirmou Roberto Lent. “Um deles foi o desenvolvimento de ferramentas de análise neuronal que não existiam antes, marcadores coloridos para diferentes neurônios com os quais conseguimos ver como as conexões acontecem. Essas ferramentas bioquímicas de rastreio de neurônios já são muito utilizadas.”

“Não é que tenha sido negativo, apenas venderam um objetivo que não conseguiram entregar”, concluiu Lent. “Mas pesquisa é assim mesmo, temos uma hipótese que pode ou não ser confirmada. Isso não quer dizer que perdemos tempo, descobrimos muitas coisas no caminho.