Homem confessa sua paixão pelo futebol a ponto de se envolver em brigas nos jogos do filho na escola, enquanto mulher revela sua participação em um triângulo amoroso formado pela amiga e o namorado. Eis duas histórias de um conjunto de dez monólogos que formam o espetáculo Dez por Dez, atos confessionais cuja franqueza verbal tira o fôlego do público, que poderá acessá-los gratuitamente no site do Teatro Unimed, a partir de quinta, 20.

Escritos pelo dramaturgo e cineasta americano Neil LaBute, os monólogos foram criados em 2014 especialmente para exibição no Audience Channel, na TV americana, e seguem uma regra básica: com duração de dez minutos, cada um traz o elenco falando diretamente para a câmera, em tempo real, sem cortes ou edições – a interpretação, sempre limpa, necessita revelar rapidamente o conflito.

“Além de ser um excelente exercício de atuação, permite ao ator criar um vínculo com o espectador”, comenta Leopoldo Pacheco, intérprete de um homem de meia-idade que, no discurso, logo se revela uma pessoa racista e homofóbica. Trata-se de um dos diversos perfis humanos com que LaBute exerce a habilidade para narrar dramas sem reservas ou moralismo.

A reportagem acompanhou a filmagem de sua cena, no sábado à tarde, no restaurante Casimiro, localizado no edifício onde está o Teatro Unimed, na região da Avenida Paulista. Foram quatro tomadas em que Pacheco ofereceu variações sutis na interpretação até atingir o ponto ideal. “Foi maravilhoso retomar um trabalho que remete ao teatro, depois de mais de um ano afastado dos palcos por causa da pandemia”, disse ele, visivelmente emocionado. “E justo com o texto sobre um homem horrível, mas que infelizmente reflete bem o que muitos pensam na realidade.”

“LaBute compôs um arco de emoções, que vai do drama à comédia”, observa Guilherme Leme Garcia, diretor das dez atuações que foram filmadas por seu irmão, o cineasta e diretor de fotografia Gustavo Leme. Juntos, eles se mantêm fiéis ao conceito original do projeto, filmando os atores estáticos, em preto e branco, com o olho na câmera. Mas acrescentaram detalhes sofisticados. “Fomos em busca de uma estética documental da fotografia, a partir de trabalhos de nomes como Cartier Bresson, Peter Lindbergh, Annie Leibovitz”, observa Gustavo.

De fato, LaBute apresenta um retrato do homem contemporâneo que, por sua natureza contraditória, consegue deixar o mundo fora do eixo. A forma direta de sua escrita, porém, já lhe rendeu comentários pouco elogiosos (misógino, chauvinista, moralista), mas seus defensores garantem que LaBute traz em suas observações sobre os homens algo que outros autores contemporâneos ainda não trabalharam com autoridade: o senso de pecado.

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“Eu pretendia que Dez por Dez se parecesse com uma experiência bonita, conectada, totalmente realizada, e não apenas uma peça que estava sendo lida para o público por atores talentosos ou conhecidos”, disse LaBute ao Estadão, em entrevista realizada por e-mail. “As palavras são sempre essenciais para mim – elas são a porta de entrada para tudo o que faço ou tento fazer, então sou muito cuidadoso com o que escrevo e tento apresentar ao público.”

A observação encontrou eco entre os atores brasileiros envolvidos no projeto. “LaBute endereça a fala”, comenta Denise Fraga. “O texto é muito direto, simples, e dá a impressão de se tratar de uma pessoa falando naturalmente, sem artimanhas dramatúrgicas. São dez janelas com pessoas falando direto para você. O plano-sequência de 10 minutos dá mais crueza e coloca o espectador como um terapeuta, um amigo, enfim, outro personagem.”

“O texto é divertido e, ao mesmo tempo, profundo”, complementa Ícaro Silva, intérprete do homem que relata o sonho bizarro que teve com uma mulher que viajou ao seu lado, em um avião. “Os monólogos dialogam com nosso tempo, que é encarado de frente.”

Denise contou ao Estadão que decidiu participar do espetáculo quando chegou ao final de seu texto – ela vive uma mulher que, depois de eventos trágicos, revela o desejo pelo suicídio – e, ao final, busca a cumplicidade do espectador para ajudá-la a desistir desse desejo. “Essa mulher sente algo muito comum hoje, que é atingir um limite, o momento em que não se sabe mais como prosseguir. Guilherme pediu para que me aproximasse da dor dessa mulher. Ela tem uma avaliação sobre si mesma assustadoramente lúcida, muitas pessoas vão se identificar, pois são pensamentos que passam pela cabeça das pessoas.”

Nascido em Detroit, em 1961, Neil LaBute estreou no cinema em 1997, com Na Companhia dos Homens, cuja virulência masculina contra mulheres frágeis cravou-lhe a fama de misógino. Mas logo a força de sua dramaturgia se impôs – críticos entusiastas logo compararam suas peças às de Strindberg, Ibsen e Albee em início de carreira. A maioria, no entanto, o equipara a David Mamet. O segredo, portanto, está na carpintaria do texto. “A prosa de LaBute é meticulosamente construída”, atestou, certa vez, Monique Gardenberg, que dirigiu Baque em 2005, primeira montagem brasileira de um trabalho do dramaturgo. “Cada detalhe é cuidadosamente revelado no momento certo, como em uma equação matemática, e, quando o castelo está todo construído, LaBute o destrói sem piedade.”

Monique está à frente da Dueto Produções, empresa que produz Dez por Dez, aumentando a sequência de peças escritas pelo autor americano. “São espectros que revelam a complexidade da natureza humana”, comenta Guilherme Leme, que já dirigiu outro espetáculo de LaBute, A Forma das Coisas, em 2010. Ele e Gustavo são responsáveis pela adaptação dos textos, buscando sempre referências mais próximas ao público brasileiro.

No ano passado, uma versão de Dez por Dez foi encenada nos Estados Unidos via Actor’s Studio que, desde 2013, em sua unidade de St. Louis, homenageia LaBute com um festival anual de novos talentos do teatro. Por ser um conjunto de monólogos, o projeto ganhou mais destaque diante do isolamento social provocado pela pandemia de covid.

“O tipo de performances teatrais filmadas que cresceram desde o ano passado traz indicativos da intimidade que eu estava tentando alcançar com a série”, conta LaBute, na entrevista. “Uma pessoa falando diretamente para outro espectador (ou espectadores) é o que tenho visto nos últimos doze meses ou mais.”

Zeloso de sua escrita (“as palavras são o tijolo e a argamassa da minha profissão – eu as amo e as trato com o maior respeito”), LaBute curiosamente se revela dividido com a improvisação dos atores quando encenam seus textos. “Permito a improvisação que, às vezes, é ótima, mas outras, não. Não gosto da possibilidade de que alguém acredite que pode rapidamente ter uma ideia, palavra ou frase melhor do que aquelas que tenho lutado para criar por um longo período de tempo. Mas, quando consegue, é como mágica e adoro isso.”

Questionado, na entrevista, sobre se considerar um autor político, LaBute primeiro se revelou surpreso com a pergunta, para então dizer que não. “Estou muito mais interessado na geografia do desejo e em como meus personagens se relacionam (ou não) entre si do que com sua atitude política”, justifica.

A cada semana, serão exibidos dois novos monólogos de Dez por Dez no site do Teatro Unimed (www.teatrounimed.com. br). E os primeiros serão os de Angela Vieira e Johnny Massaro. A visualização é gratuita e o público será convidado a colaborar com doações para o Fundo Marlene Colé, em prol dos trabalhadores do teatro em situação de insegurança alimentar devido aos efeitos da pandemia.


As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.


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