Um projeto aprovado nesta semana na Câmara dos Deputados sustou uma resolução do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente) e, na prática, criou entraves para o acesso ao aborto legal para crianças e adolescentes que sofrem violência sexual.
Neste texto, a IstoÉ apresenta dados sobre o cenário da violência sexual contra menores de idade no Brasil e quais são os impactos que esse texto, que depende de aprovação do Senado para ser encaminhado à sanção ou veto do presidente Lula (PT), pode representar.
O cenário da violência sexual
Conforme dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 64,7% dos estupros contra crianças e adolescentes registrados em 2023 ocorreram dentro das residências das vítimas. No recorte de 2011 a 2023, houve um aumento de 91,5% nos casos de violência sexual no país — entre eles, 76% tiveram vulneráveis como vítimas (veja mais informações abaixo).

Fórum Brasileiro de Segurança Pública (Anuário 2024)

Fórum Brasileiro de Segurança Pública (Anuário 2024)

Fórum Brasileiro de Segurança Pública (Anuário 2022)
Diante deste cenário, o Conanda publicou uma normativa para garantir a menores de idade o acesso ao aborto legal nos casos previstos em lei, como a gravidez resultante de estupro, e a não exigência de apresentação de um Boletim de Ocorrência para a realização do procedimento.
Os entraves do projeto
Parte das bancadas de direita no Congresso considerou que o Conanda exerceu sua competência e acrescentou prerrogativas para a realização do aborto. Em conjunto com outros parlamentares, a deputada Chris Tonietto (PL-RJ) apresentou o PDL (Projeto de Decreto Legislativo) 3/2025, para estabelecer a necessidade de apresentação de boletim de ocorrência ou autorização judicial para o acesso à prática por crianças e adolescentes.
Com 317 votos a favor, o projeto foi aprovado pelos deputados. Parlamentares como Filipe Barros (PL-PR) e Dr. Frederico (PRD-MG) chamaram a aprovação de “vitória da vida”. Já Erika Kokay (PT-DF), Fernanda Melchionna (PSOL-RS) e Sâmia Bomfim (PSOL-SP) afirmaram que o texto é um retrocesso no combate ao abuso sexual contra menores. Mesmo com as manifestações, o texto seguiu para avaliação do Senado.

Deputada federal Chris Tonietto (PL – RJ), autora do projeto que reduz acesso ao aborto legal no Brasil
O que vem pela frente
À IstoÉ, Marina Ganzarolli, advogada e presidente da ONG Me Too Brasil, apontou entre as consequências de aprovação do PDL o potencial de aumento da subnotificação dos casos e de realização de aborto em locais clandestinos, com maior risco envolvido para as pacientes submetidas.
Na visão da advogada, o texto vulnerabiliza ainda mais crianças e adolescentes que vivem em situações precárias ou comunidades de difícil acesso, onde há maior incidência de casos de violência sexual. “Esse tipo de crime ocorre majoritariamente dentro das casas das vítimas. Se elas não têm acesso a educação e saúde, não temos como saber que a violação está acontecendo“, afirmou.
Marina Poniwas, integrante do Conselho Federal de Psicologia e vice-presidente do Conanda, concordou. À IstoÉ, ela destacou que a resolução inicial tinha o objetivo de combater os obstáculos ilegais impostos às crianças e adolescentes no momento de acesso ao aborto legal. “Com a possível derrubada da normativa pelo projeto, essas barreiras ganham mais força na nossa sociedade”, concluiu.
O que dizem as leis
No Brasil, há algumas legislações que tratam sobre a proteção de crianças e adolescentes à violência sexual, como o artigo 5° do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) que veda qualquer tipo de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
O artigo 217-A do Código Penal define como estupro de vulnerável toda conjunção carnal define como estupro de vulnerável toda conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos; a Lei do Depoimento Especial, também conhecida como “Lei da Escuta Protegida”, estabelece um sistema de garantia de direitos para vítimas ou testemunhas de violência e tem como função evitar a revitimização ao longo do processo.
Já a Lei do Minuto Seguinte determina o atendimento obrigatório e integral nos hospitais do SUS (Sistema Único de Saúde) nos casos de violência sexual. O aborto legal, por sua vez, é previsto no artigo 128 do Código Penal em casos específicos como risco de vida para a gestante, bebês anencéfalos e gravidez resultante de um estupro.
Para Marina Ganzarolli, o projeto aprovado na Câmara não altera as legislações vigentes sobre o caso. “Na minha visão, o texto apenas serve para o Congresso demonstrar para as meninas menores de 13 anos que elas não têm direito a uma infância livre de violência”, acrescentou.
Indagada sobre a necessidade de apresentar um boletim de ocorrência, Marina Poniwas afirmou que atualmente os agentes de saúde já são obrigados a notificar o Conselho Tutelar em caso de violência sexual para que o órgão possa adotar as medidas protetivas cabíveis, como a notificação das autoridades policiais.
“Quando impomos a exigência de um boletim de ocorrência para acesso ao serviço de saúde, criamos mais um obstáculo que afasta a vítima do abuso sexual e também atribuímos aos profissionais de saúde a função de autoridade policial”, concluiu.