Cuidar da saúde dos outros é uma atividade cada vez mais perigosa no Brasil. Filas imensas, demora no atendimento, falta de leitos, equipes reduzidas e, acima de tudo, um cotidiano de agressões por parte de pacientes e familiares torna a vida de médicos, enfermeiros e farmacêuticos insegura. Quase todos já presenciaram ofensas, palavrões, ameaças, socos e pontapés, principalmente entre quem atua na rede pública. Uma pesquisa encomendada pelos conselhos regionais de medicina, enfermagem e de farmácia de São Paulo com 6.832 profissionais da saúde apurou que 71,6% já passaram por pelo menos um episódio de violência. Um em cada cinco já sofreu agressões físicas. Há registro de vítimas nocauteadas, assim como ameaças vindas de procurados pela Justiça e, pior, até de agentes da lei. Como componente adicional, essas covardias costumam ocorrer contra mulheres. Entre o pessoal da enfermagem, 84% das vítimas são do sexo feminino, entre os médicos, 57%.

Esse foi o drama enfrentado pela enfermeira Maria Lúcia Bortolucci, em Santos (SP), e pela pediatra Lyse Soares, em Niterói (RJ). Durante um plantão no Pronto-Socorro da Zona Noroeste, em 10 de agosto, a enfermeira foi jogada no chão e espancada por duas mulheres enquanto tentava internar o pai de ambas. Ela precisará de uma cirurgia no maxilar. O caso foi parar na delegacia. Na madrugada de 2 de abril, Lyse foi agredida no Hospital Icaray, depois que um casal exigiu, sem sucesso, a internação do filho, que estava só em estado febril. A pediatra foi agarrada pelos cabelos e estapeada pelos pais. O caso ganhou repercussão e os agressores, um advogado e uma fisioterapeuta, perderam seus empregos.

Os homens também são vítimas. Em 3 de janeiro, no Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto (SP), o obstetra Conrado Ragazini foi nocauteado sem aviso pelo marido de uma paciente. Ele sofreu fraturas nos ossos da face e ficou afastado por um mês. Dois dias antes, o obstetra havia feito o parto do filho do agressor. Como o bebê precisou ser encaminhado para uma UTI neonatal, o pai culpou o médico. Já o enfermeiro Wagner Batista passou a sofrer de síndrome de “burnout” após ser ameaçado de morte por um foragido da Justiça. O caso ocorreu em março, na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) São João Lavras, um das mais movimentadas de Guarulhos, Grande São Paulo, e terminou com sua demissão. Batista havia optado por manter um paciente alcoolizado no ambulatório, dando lugar para quem necessitasse de internação. Após seis horas, o paciente e seu filho tentaram esmurrá-lo e o ameaçaram. A polícia foi chamada e descobriu-se que o filho era procurado. Dias depois, pessoas estranhas passaram a ameaçá-lo na unidade. O enfermeiro começou a sofrer de ansiedade, cansaço crônico e pressão alta.

“Me recusei a passar dados sigilosos e o PM quis me prender. Tinha uma paciente com hemorragia na sala. ‘Que morra’, ele gritou” Edwiges Dias da Rosa, 61 anos, cirurgiã agredida por policiais no ABC Paulista

Sucateamento da saúde

A principal causa das agressões estaria no sucateamento do sistema de saúde pública, acredita o otorrinolaringologista Florisval Meinão, diretor da Associação Paulista de Medicina (APM). Para ele, não dá para culpar diretamente os pacientes, que estão em situação de grande vulnerabilidade. “Porém, há limites”, diz. A presidente do Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo (Coren-SP) Renata Pietro vai na mesma linha. “Descontam em quem está na linha de frente para ajudar”, diz. A solução seria aumentar a segurança nas unidades, para amenizar o problema a curto prazo, e aplicar mais recursos na Saúde, já que a maior causa de conflitos (33%) está na demora de atendimento.

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TRUCULÊNCIA PMs deixaram hematomas em braço de médica
e tentaram detê-la por desobediência (Crédito:Gabriel Reis)

A proposta para endurecer a punição a quem abusar de profissionais de saúde tem tudo para dar em nada. “Quem agride não está pensando”, diz Meinão. Sem contar que boa parte dos agredidos (80%) opta por não prestar queixa. E quando as autoridades são acionadas, de pouco adianta. Há dois anos a médica clínica K.V.G. foi assaltada dentro do consultório, em um posto de saúde no Capão Redondo, periferia de São Paulo. Um homem armado entrou com um paciente e levou seu celular. “Nunca mais voltei”. Ela deixou a rede pública e hoje só atua para convênios.

Pior é quando o profissional é vítima de quem deveria protegê-lo. Durante um plantão noturno, em 29 de julho, na UPA Baeta Neves, em São Bernardo do Campo (ABC-SP), a cirurgiã gástrica Edwiges Dias da Rosa, de 61 anos, ganhou hematomas nos braços ao ser segura com força por policiais militares. Tudo começou quando um PM exigiu a cópia do prontuário de uma vítima de violência doméstica. A cirurgiã informou que isso só seria possível mediante um pedido formal de delegado, já que os dados são sigilosos – algo usual. PMs tentaram detê-la por desobediência e o atendimento de uma idosa com foi comprometido. “Nunca vi tanta truculência”, conta. O caso está na Corregedoria da PM. É mais uma amostra de que a medicina é uma profissão de alto risco.


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