A Universidade Federal do Acre (UFAC) está no centro de um processo de denúncia feito pelo professor Cristovão Henrique Ribeiro da Silva, que acusa a entidade de perseguição institucional. Docente do curso de Geografia, ele conta que as ocorrências originaram de uma descontextualização dos áudios de suas aulas – desencadeando ações desproporcionais e de cunho preconceituoso por parte dos estudantes e da faculdade.
Por meio de uma carta-denúncia enviada à reportagem, Cristovão relatou o caso em detalhes, alegando que os desconfortos teriam ocorrido em processos administrativos, reuniões e manifestações em redes sociais ou grupos de mensagens.
A Universidade Federal do Acre nega qualquer acusação de racismo ou perseguição institucional. Em nota enviada à reportagem, a instituição afirma que o processo administrativo aberto contra o docente foi instaurado em resposta a uma denúncia formal apresentada por alunos – o que configura o procedimento padrão para situações desse cunho.
Prof. Dr. Cristovão Henrique Ribeiro da Silva é um geógrafo, pesquisador e internacionalista natural do Mato Grosso do Sul. Ele se identifica como um homem negro e gay, e começou sua trajetória na UFAC no ano de 2019. Segundo ele, a expectativa era que a experiência na universidade fosse de aprendizado, troca de ideias e crescimento profissional.
Início do caso
Todo o caso teria iniciado em agosto de 2023, duas semanas após o professor solicitar aos alunos que realizassem uma leitura de oito páginas. Quando Cristovão notou que nenhum dos discentes havia cumprido a tarefa, os repreendeu de maneira intensa e direta — algo que o educador alega fazer parte de sua didática descontraída.
A partir desse ponto, estudantes passaram a gravar — segundo Cristovão, sem sua permissão — áudios das aulas do geógrafo. Os registros teriam sido cortados e retirados de contexto, enfatizando passagens em que o professor se expressa de forma descomedida.
“O que era uma simples cobrança de comprometimento acadêmico se transformou em uma arma contra mim”, diz Cristovão.
Em uma das gravações, que ganhou destaque particular, o educador teria dito que Geografia era um “curso de gente pobre”. A fim de esclarecer a situação e tentar provar o argumento de que as passagens seriam manipuladas, Cristovão disponibilizou o restante da fala.
Nela, o professor argumenta que o curso de geografia é composto, majoritariamente, por pessoas “pobres” e, por isso, não pode ser encarado como um “conto de fadas”.
“Se vocês não conseguirem entender a geografia do pé de vocês, vocês não vão conseguir ser professor de geografia, cara. Não dá pra ser assim”, expressa ele no áudio.
Em outros momentos, o educador profere palavrões e emprega um linguajar imoderado. Ele diz que a displicência dos alunos é “vagabundagem” e alega que eles “ficaram burros”. Nos demais áudios, segue com uma abordagem “desbocada”, sempre em represália contra a falta de comprometimento acadêmico dos alunos.
De acordo com o denunciante, a manipulação dos trechos foi feita a fim de construir o estereótipo racista do “negro agressivo”, rotulando-o como um homem exageradamente descontrolado e perigoso.
Um dos principais argumentos empregados pelo prof. Cristovão diz respeito à criação do arquétipo conhecido como “negro agressivo” ou “negro perigoso”. Na visão do docente, as reações a sua conduta foram expressadas de forma desproporcional, com a utilização de justificativas racistas para destilar ataques sobre sua moral.
O estereótipo alegado pelo geógrafo é discutido no campo dos estudos antirracistas, que buscam identificar os rótulos discriminatórios que acompanham a imagem de pessoas negras.
O “negro violento” seria, assim, uma maneira preconceituosa de avaliar homens pretos como propícios a posturas agressivas, brutas e virulentas. Um estudo da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte explica a construção dessa figura:
“A sociedade brasileira, marcada pelo racismo estrutural, impõe estereótipos ao povo negro e reduz, muitas vezes, cada pessoa a esses traços milenares. Um deles recai especificamente sobre o homem negro e o marca como alguém violento que deve ser temido, lendo seu corpo como uma espécie de arma”.
Acusação de retaliação
Após os acontecimentos, um processo administrativo interno (23107.024175/2023-14) foi oficializado e mandado para Pró-Reitoria de Graduação da Universidade Federal do Acre, a tratar da ofensa e falta de tratamento urbano de Cristovão para com os acadêmicos da instituição.
As informações do caso foram, assim, largamente compartilhadas e fragmentadas via aplicativos de mensagens, alcançando alunos e professores. Os materiais ficaram em domínio público por 22 horas e 29 minutos, o que poderia caracterizar uma infração ao sigilo de processos administrativos.
A decisão da instituição foi determinar o afastamento imediato de Cristovão — sob a alegação de que essa seria uma medida de segurança. A defesa do professor aponta uma incongruência na agilidade da tramitação do processo, já que a deliberação foi feita em um tempo significativamente menor do que o padrão.
“A análise interna revelou que 63 processos tramitados sob minha responsabilidade na UFAC levaram, em média, 16 dias para respostas de órgãos competentes. No entanto, o meu afastamento, que resultou em uma sanção desproporcional, foi decidido em menos de 24 horas”, explica ele na carta-denúncia.
Após a “resolução”, Cristovão tentou realocação em um outro órgão federal, o Ministério do Planejamento e Orçamento (MPO) — porém, mesmo após aprovação no processo seletivo, ele foi impedido de ingressar. Segundo a carta, a UFAC negou a migração do professor para a nova entidade, alegando que ele seria “essencial” para o curso acadêmico.
“A contradição é flagrante: enquanto minha presença foi considerada essencial para o curso de Geografia, servindo como justificativa para negar minha mobilidade ao Ministério do Planejamento e Orçamento (MPO), a administração da UFAC, por outro lado, não hesitou em aplicar uma suspensão arbitrária de 54 dias sem remuneração”, afirma Cristovão.
A acusação do professor é de que trâmites administrativos foram intencionalmente usados pela instituição para prejudicá-lo. A inclusão de setores como a Pró-Reitoria de Graduação (PROGRAD) e o Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH) no curso do caso seria um exemplo da extrapolação de funções e tentativa de amplificar pressões contra o professor – já que os órgãos citados não possuem competência legal sobre o ocorrido e a decisão deveria ser restrita à Pró-Reitoria de Desenvolvimento e Gestão de Pessoas (PRODGEP).
Além disso, ele expõe que foi alvo de comentários preconceituosos e ataques de ódio – especialmente de alunos – devido ao episódio. Isso configuraria, segundo a denúncia, um cenário de racismo institucional.
Retomada do caso
Durante o segundo semestre de 2024, o caso referente ao comportamento de Cristovão foi retomado. No dia 11 de outubro, o acontecido foi noticiado pela imprensa local do Acre, veiculando as gravações recortadas.
A situação desencadeou, segundo o acusante, uma enxurrada de ataques racistas, depreciativos e homofóbicos. Pelo levantamento apresentado no documento de denúncia, a cobertura somou mais de 420.000 acessos nas redes sociais. Os comentários incluem passagens como “tinha que ser preto” e “deveria perder o emprego”, além de diversos tipos de incitações à violência física.
A análise apresentada por Cristovão relativa aos perfis que destilaram ataques apontam que 88% deles estariam vinculados, direta ou indiretamente, à comunidade da UFAC —com indícios de coordenação nos horários de postagens e reutilização de dispositivos, uma vez que algumas contas teriam o mesmo número IMEI.
O que diz a UFAC
A responsável pela argumentação do caso é a Reitora Guida Aquino. Ela aplicou a sanção que decidiu pela suspensão de Cristovão por 54 dias sem remuneração.
A Reitora Guida fundamenta a resolução em supostas infrações aos incisos IX e XI do art. 116 e inciso V do art. 117 da Lei nº 8.112/90. São eles:
- IX – Manter conduta compatível com a moralidade administrativa
- X – Tratar com urbanidade as pessoas
- V – É vedado ao servidor promover manifestação de apreço ou desapreço no recinto da repartição.
Em nota enviada à reportagem, a Universidade Federal do Acre afirma que o processo administrativo mencionado foi instaurado em resposta a uma denúncia formal apresentada por alunos – o que configura o procedimento padrão para situações desse cunho. O texto nega qualquer acusação de racismo ou perseguição institucional.
“A instituição reitera seu compromisso com a transparência, a imparcialidade e o rigor no cumprimento dos ritos administrativos”, escreveu.
A fundação garantiu que todos os investigados têm direito à ampla defesa e ao contraditório. A fim de assegurar isso, a UFAC forma uma comissão específica para averiguar os fatos, ouvir as partes envolvidas e elaborar um relatório conclusivo ao final do PAD – segundo Cristovão, a reitoria não teria acatado a recomendação do relatório final da comissão mencionada.
Ademais, a entidade diz que há uma responsabilidade institucional em atender a totalidade de denúncias e queixas encaminhadas, sendo os canais oficiais de ouvidoria essenciais para certificar a transparência e a integridade das ações.
“Por fim, a Ufac refuta de maneira categórica qualquer alegação de perseguição institucional. Todas as ações da universidade são pautadas pela ética, pela legalidade e pelo respeito aos princípios que regem a administração pública”, enfatizou a universidade.
*Estagiário sob supervisão