A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal considerou “louvável” a iniciativa da Magazine Luiza em promover um programa de trainee só para negros. A campanha foi alvo de ação civil movida pelo defensor público Jovino Bento Júnior na última segunda, 5, em processo que provocou mal-estar dentro da Defensoria da União.

Em nota, os procuradores Marco Antonio Delfino de Almeida e Carlos Alberto Vilhena não citam nominalmente a ação do defensor, mas criticam o uso da expressão “racismo reverso” para tentar enquadrar o trainee da Magazine Luiza como ilegal.

“A alegação de ‘racismo reverso’ constitui uma falácia retórica para encobrir o privilégio que contempla, historicamente, as parcelas hegemônicas da sociedade brasileira; esse argumento enganoso busca enfraquecer a evidência do racismo estrutural”, afirmam. “Não é possível confundir com racismo medidas destinadas a reparar distorções e desigualdades sociais e demais práticas discriminatórias adotadas, nas esferas pública e privada, durante o processo de formação social do Brasil”.

Os procuradores destacam que a iniciativa da Magazine Luiza é “louvável e incensurável” por destinar oferta de vagas a grupos historicamente excluídos, “a despeito das controvérsias e dos confrontos de opiniões que a iniciativa gerou na sociedade brasileira”.

“Ações afirmativas como a adotada pela empresa Magazine Luiza encontram fundamento e validade, tanto no âmbito teórico do direito, quanto na dura realidade social brasileira, de discriminação institucionalizada contra diversos grupos sociais – em especial, na questão em análise, contra a população negra e parda -, e, por isso mesmo, têm o condão de eliminar desigualdades sociais e étnicas decorrentes de fatores históricos, sociais, econômicos, entre outros tantos que constituíram e constituem a sociedade brasileira”.

Mal-estar na Defensoria

Na peça enviada à Justiça do Trabalho do Distrito Federal, o defensor Jovino Bento Júnior acusou a Magazine Luiza de promover “marketing de lacração” ao elaborar um programa de trainee voltado apenas a candidatos negros. Segundo ele, a medida “não é necessária”, pois existiriam outras formas de se atingir o mesmo objetivo.

O processo, porém, provocou mal-estar entre defensores públicos. Segundo fontes ouvidas pelo Estadão que atuam em tribunais superiores de Brasília, a repercussão da ação contra a Magazine Luiza foi “péssima” e muitos integrantes da Defensoria se manifestaram contra a posição de Jovino Bento Júnior, que atua na área trabalhista da entidade. Um defensor classificou o episódio como “muito constrangedor” para a instituição.

O Grupo de Trabalho de Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União (DPU) emitiu nota técnica repudiando a ação civil, destacando que ela “não reflete a missão e posição institucional da Defensoria Pública da União quanto a defesa dos direitos dos necessitados”.

“Mais que isso, contraria os direitos do grupo vulnerável cuja DPU tem o dever irrenunciável de defender”, apontaram onze defensores públicos.

Nos bastidores, a ação movida por Jovino foi encarada como uma “reação” de um grupo minoritário de defensores públicos mais alinhados com a gestão Jair Bolsonaro que perderam a última eleição interna para o Conselho Superior da Defensoria Pública da União, realizada em julho.

A peça assinada por Jovino, por exemplo, cita declaração do presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, que foi alvo de recursos da própria Defensoria para tirá-lo do cargo por adotar medidas que vão de encontro à defesa do movimento negro, como a publicação de textos que atacavam a figura de Zumbi dos Palmares e criação de um selo “Não é Racista”.

Em junho, reportagem do Estadão revelou áudios de Camargo chamando o movimento negro de “escória maldita”, que abriga “vagabundos” e chamou Zumbi de “filho da puta que escravizava pretos”.

A DPU emitiu nota de esclarecimento sobre a ação movida contra a Magalu, afirmando que a política de cotas “constitui-se em forte instrumento” para a “construção de uma sociedade livre justa e solidária”. Apesar disso, a entidade pontuou que o defensor tem independência funcional, e não depende de prévia análise de mérito ou autorização hierárquica para apresentar uma ação contra a empresa.

“Como instituição constitucionalmente encarregada de promover o acesso à justiça e a promoção dos direitos humanos de dezenas de milhões de pessoas, a DPU apoia e incentiva medidas do poder público e da iniciativa privada que proporcionem redução de carências e de vulnerabilidade”, afirmou a DPU. “Com o mesmo objetivo, a Instituição defende, de forma intransigente, a independência funcional de seus membros, prerrogativa voltada à boa atuação do membro em favor do assistido da instituição”.