O presidente assume hoje na Argentina a presidência do Mercosul, mais um marco para a construção de sua agenda no exterior. Lula priorizou a política internacional e tem imposto um ritmo de viagens recorde que supera até seu ritmo forte nos anos 2000. Só neste mês, serão três esticadas fora do País. Tirar o Brasil do isolamento é de fato uma prioridade depois da aberração bolsonarista, e é louvável que essa pauta esteja em primeiro plano. O problema é que há excesso de ideologia e personalismo. Aparentemente, os interesses da velha esquerda se sobrepõem a uma agenda moderna, e o foco é mesmo projetar o líder petista.

A primeira tentativa para esse upgrade de imagem naufragou. Lula tentou “liderar” a paz entre a Rússia e a Ucrânia, mas a impropriedade dessa pretensão se perdeu com as declarações equivocadas sobre o conflito, a falta de estatura para lidar com o principal tema geopolítico global atual e com um mal-disfarçado antiamericanismo que tendeu a exaltar o ditador russo Vladimir Putin e se alinhar com os interesses chineses contra os EUA. No fundo, em nome do multilateralismo e do Sul Global (a nova roupagem do movimento dos países não-alinhados), o que se deseja é acabar com a ordem global que emergiu da Segunda Guerra, dos seus órgãos políticos (como a ONU) aos econômicos (FMI e Banco Mundial), passando por estatutos civilizatórios como a Declaração dos Direitos do Homem.

Lula defende abertamente ditaduras, acaba de declarar que a democracia é um “conceito relativo” (exatamente como falava Ernesto Geisel; o general deve estar rindo do lado de lá) e quer incluir a Bolívia no Mercosul, depois de tentar emplacar sem sucesso a Venezuela. E o país de Maduro só não está mandando no bloco por causa da cláusula democrática, que os criadores do bloco tiveram o bom senso de incluir. Se não fosse essa iniciativa, o Mercosul seria palco preferencial para autocratas.

O pulo do gato para o Mercosul seria a concretização do acordo de livre comércio com a União Europeia, travado há quase 25 anos (inclusive os 13 da era petista). Perto de se concretizar, esse tratado é torpedeado pela atual gestão do Itamaraty por motivos equivocados. O maior empecilho é a cláusula que exige competição para as compras governamentais. Lula acha que deve haver reserva de mercado para as empresas brasileiras. Outro motivo, na visão do governo, é o item pró-ambiental sacado de última hora pelos europeus.

No primeiro caso, trata-se apenas de miopia “neoindustrializante”. No segundo, ainda há razões para o esperneio, já que as exigências parecem atender ao interesse protecionista dos agricultores europeus. Mas é preciso enxergar essa manobra com uma perspectiva mais serena: os europeus só fizeram isso porque o Brasil, sob Bolsonaro, abertamente descumpriu metas antidesmatamento: o capitão achava que era preciso devastar a Amazônia para fazer o Brasil enriquecer.

Lula evidentemente tem um olhar e uma prática infinitamente mais desenvolvida, mas não menos anacrônica. Reservas de mercado e política industriais obsoletas têm atrofiado a indústria brasileira há décadas, inclusive nos anos petistas. A economia atualmente é feita de cadeias globais de produção, com forte interconexão com outros países, estimulando a competição e aumentando a produtividade. É o que o acordo com os europeus poderia propiciar. Perder novamente a oportunidade de fechar o acordo com os europeus significa continuar relegando o País ao subdesenvolvimento e à dependência econômica (dessa vez, atrelada ao bloco chinês). O Uruguai, país fundador do Mercosul, já se rebelou contra essa visão passadista e ameaça implodir o bloco.

Ao invés de afagar autocratas, o governo brasileiro deveria reorientar suas prioridades. A decantada “união sul-americana” deve ocorrer com uma agenda pragmática e modernizante de desenvolvimento econômico, e não com velhas palavras de ordem. A integração bolivariana, até hoje, só foi pródiga em produzir caudilhos – como aliás temia o próprio Simón Bolívar, que era um liberal.