Sabe quando tudo dá certo? A temperatura está agradável, o som funciona perfeitamente e o povo, apesar de bem diversificado, estava em clima de celebração e congraçamento. Foi assim o primeiro dia da edição de estreia do Festival Turá, realizado neste sábado, dia 2, no parque Ibirapuera.

Quem passou por lá – ou acompanhou pelo Multishow – viu e ouviu uma mistura de muita coisa boa que vem sendo feita no Brasil. Quem foi para ver e ouvir rap dançou também samba; roqueiros foram tolerantes com as batidas mais eletrônicas; a turma ligada em modernidades curtiu sons mais ancestrais. Lotado, variado, rico e divertido, o Turá deixa uma certeza: um festival brasileiro não precisa de músicos estrangeiros para ser inesquecível.

Evidente que rolaram algumas das chatices típicas de eventos dessa magnitude. No intervalo (animado por DJs) entre as atrações, as filas nos banheiros eram monumentais, principalmente nos femininos. Esses também eram os momentos em que o público perdia cerca de 15 minutos para comprar créditos nos caixas espalhados pelo evento. E os preços estimulavam recargas recorrentes. Um pastel (desses de feira) custa R$ 17. Uma Budweiser é vendida por R$ 14, o dobro do preço do copinho de água.

Vencidos esses percalços, a plateia se jogou com disposição na aventura musical proposta pelo evento e foi presenteada com algumas apresentações que vão grudar na memória. Vamos a elas:

Roberta Sá

Roberta Sá no Festival Turá
Fotos Sidinei Lopes

A plateia ainda estava um tanto esvaziada quando a cantora subiu no palco, pouco depois das 13h15. Mas quem estava ali era bastante fã. Nessa fase em que Roberta decidiu explorar um repertório exclusivamente sambista, foram raras as canções em que ela não teve a companhia do público.

O clima era de roda de samba. Quem não conhecia o repertório de Roberta Sá ficou convencido do seu talento depois de ouvir a sua releitura de “Sufoco”, sucesso na (quase imbatível) voz de Alcione.

Xamã

Xamã no Festival Turá
Já com a plateia consideravelmente mais cheia, o rapper carioca também foi acompanhado em várias de suas letras quilométricas. Exemplo disso foi “Luxúria”. Muitas pessoas cantaram a música de cabo a rabo. Mas a maioria se juntou no refrão: “Luxúria me estraga, me torna menos de mim”.

Durante a apresentação, teve uma música que nem o fã mais dedicado da banda conhecia. Sobre uma base sacolejante, o rapper começou a improvisar rimas no melhor estilo free style. Impressionante como ele consegue dar sentido e fluxo a uma torrente de ideias, comentários sobre pessoas presentes e lembranças estruturais do passado. O parque veio abaixo quando ele conseguiu encaixar um “Fora, Bolsonaro” na letra.

Lagum

Lagum no Festival Turá
A banda mineira fez o show mais divertido e descompromissado do dia. Com seu pop e reggae de fácil digestão, eles fizeram todos cair na dança, mesmo quem ignorava o som deles por completo.

A determinada altura, o vocalista da banda, Pedro Calais, definiu a música deles como fofa. “Quem não gosta de música assim?”, quis saber. Na sequência, disse que iria cantar uma que mostra o lado mais pesado da banda. E executaram “Eu e Minhas Paranoias”. Trata-se de um rock… fofo.

Duda Beat

Duda Beat no Festival Turá
A cantora pernambucana apresentou uma versão comprimida do show que realizou no Espaço das Américas, no dia 1º de abril deste ano. Naquela ocasião, ela centrou muito o foco no seu segundo disco. Com menos tempo no palco, ela achou por bem equilibrar o repertório com canções gravadas anteriormente. E ficou muito bom.

Enquanto a plateia esperava para entoar “Bixinho” e “Jeito de Amar” junto com a cantora, a noite começou a cair, o horizonte a oeste se alaranjou, a lua apareceu. Com esse cenário, uma banda muito bem sincronizada, seis bailarinas e a música de Duda Beat, a apresentação ganhou um toque de magia.

Paulinho da Viola

Paulinho da Viola no Festival Turá
Talvez a apresentação mais arriscada da noite. Ele foi escalado para substituir Zeca Pagodinho, que positivou para Covid. Diante de uma plateia que comprou ingresso para cantar “Deixa a Vida Me levar” de braços para o alto, Paulinho da Viola não usou a saída menos complicada que seria enfileirar seus sucessos. Abriu com três menos conhecidas e só na quarta engatou “Amor à Natureza”.

E foi assim durante o show todo. Entre “Coração Leviano”, “Pecado Capital” ou “Foi um Rio que Passou em Minha Vida”, ele recheou o repertório da noite com obras menos conhecidas, mas que acabaram cativando a plateia. Tudo com muita elegância. Para enfrentar a missão difícil, Paulinho da Viola fez como um velho marinheiro, que, durante o nevoeiro, leva o barco devagar.

Emicida

O rapper que “assassinava” adversários em competições de rima e que foi uma das maiores revelações do hip hop nacional ainda está lá. Mas hoje Emicida é musicalmente bem maior e rico que isso. Ele virou uma estrela pop. Logo nos primeiros versos de “A Ordem Natural das Coisas”, vozes majoritariamente femininas berram a letra junto com o cantor.

Durante a apresentação, ele indicou músicos que influenciaram essa busca por mais variedade musical. Wilson das Neves, Letieres Leite e Pixinguinha foram homenageados com imagens e citações. Para mostrar que não estava brincando, Emicida empunhou a flauta transversal e tocou “Carinhoso”.

O show teve duas apoteoses. A primeira ocorreu quando, ainda no meio da apresentação, o cantor interpretou os versos de “Quem Tem um Amigo (Tem Tudo)”. A segunda e mais esperada foi quando, em “AmarElo”, a voz de Belchior surgiu para dizer que “no ano passado eu morri, mas este ano eu não morro”. Nem a Duda Beat, que estava na plateia, conseguiu se conter.