Atleta do Club Villa San Carlos, Mara Gomez foi a primeira jogadora transgênero a disputar a primeira divisão do feminino profissional na Argentina. Em entrevista à RFI, ela contou como superou todas as dificuldades e preconceitos para realizar o sonho e estrear nos gramados.

“Foi exatamente numa fase da minha vida em que me encontrava emocional e psicologicamente mal, por questões que tinham a ver com as discriminações e preconceitos que vivia no dia a dia. Eu estava em um estágio de transição com a percepção de mim mesma, com minha sexualidade, com meu gênero”, diz.

Foi justamente o futebol que tirou Mara de um estado no qual ela se considerava vulnerável emocionalmente.

“Percebi que era bom para mim porque às vezes me fazia esquecer muitas coisas. Sempre disse que era como um anestésico para a dor porque me sentia mal. Encontrei no futebol um controle emocional que era o que eu precisava, e se tornou um vício. Precisava praticá-lo para ficar bem e até hoje é um estilo de vida para mim”, contou.

Gomez ressaltou ainda que o futebol surgiu como uma meio de inclusão para ela. Depois de participar de ligas amadoras, a jogadora enfim recebeu um convite para atuar pelo Villa San Carlos. No entanto, o registro para jogar como profissional dependia de uma série de fatores, além de burocrático. Em meio à paralisação do processo por conta da pandemia, Mara só conseguiu estrear no último dia 7 de dezembro.

“Foi um processo de aprendizagem para mim, como jogadora de futebol e como pessoa. E tive a oportunidade de ser aceita pela Federação de futebol argentina para poder fazer parte do futebol profissional. Isso mostra uma evolução social, em questões de direito e conquistas. Este é o resultado de anos de luta de gerações passadas que lutaram para serem reconhecidas e reconhecidas na sociedade”, relembrou.

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AFA agiu com base em lei

Com legislação baseada na identidade de gênero, que passou a valer em 2012, a Federação Argentina de Futebol autorizou Mara a jogar, pois o texto da lei prevê que pessoas transgênero sejam tratadas conforme o gênero pelo qual elas se identificam.

“Hoje aqui na Argentina temos uma lei de identidade de gênero que nos protege, que diz que devemos ser tratados em qualquer instituição pública ou privada de acordo com a própria percepção que temos. Eu me vejo como uma mulher. Este é o início de um futuro melhor para as próximas gerações. O futebol para mim, além de competitivo, pode ser uma área de inclusão, de controle emocional, de disciplina, cumpre muitas funções”, diz.

Outro ponto considerado polêmico é a questão de uma possível vantagem física por Mara. Em resposta, a jogadora fez testes físicos que demonstraram níveis de testosterona ( hormônio masculino) no limite permitido para atletas no futebol feminino.

“Infelizmente, quando fazem uma avaliação biológica, chegam à conclusão de que o corpo do homem tem certas vantagens físicas, como velocidade e força, o que seria uma vantagem para competir com as mulheres. Mas isso é apenas um paradigma, pois mesmo que tenhamos velocidade e força por natureza, isso não significa que sejamos um bom jogador de futebol ou de qualquer esporte sem praticá-lo. Cada jogador, jogadora ou atleta tem que ter experiência, através do treinamento”, defende.

“Existem muitos jogadores que têm mais vantagens físicas como altura ou massa muscular, mas marcam a diferença pelas qualidades e técnicas que possuem como atleta. E além disso, o futebol é um esporte coletivo, não se trata de quem corre mais rápido ou bate com mais força na bola, mas qual time faz o gol. São muitas as questões que devem ser superadas a partir desses paradigmas, da suposta vantagem. Se uma equipe feminina que está há muitos anos jogando na primeira divisão de uma liga é colocada para jogar com uma equipe masculina que não joga futebol, a vantagem é para as mulheres pela experiência, pelo treinamento, pela qualidade do jogo”, completa.

Estreia e sonho

Depois de entrar para história do futebol feminino da Argentina, na derrota do Villa San Carlos por 7 a 1 para o Lanús, Mara, aos 23 anos, ainda espera realizar o sonho de atuar pela Seleção Argentina, além de servir de inspiração para outras pessoas trans, que tem o desejo de atuar no futebol.

“Cabe a mim ser uma referência mundial, não só como jogadora de futebol, mas como pessoa. Através da minha história, para que as pessoas comecem a conhecer minha luta, e ver o quanto foi difícil chegar aqui. Como jogadora trans, uma pessoa trans, também sou uma referência para as evoluções sociais. Hoje represento uma evolução no meu país, talvez internacional e espero que minha história e meu nome viajem pelo mundo e por outros países”, diz.

“É algo que eu adoraria, poder viajar e jogar em outros países. E talvez um dia representar a Argentina em uma competição internacional. Mas por enquanto continuo desfrutando dessa etapa, de atuar na principal divisão do país. Mas quero sim, ser uma jogadora de outros países e defender a seleção argentina”, finaliza.