Pela pequena porta na Rua Nestor Pestana já entraram os maiores artistas da música clássica do século 20. Ela fica quase no local onde a rua, no centro de São Paulo, faz a curva, passando então pela Catedral Evangélica e seguindo em direção à Rua da Consolação, caminho para a Biblioteca Mário de Andrade e para o Teatro Municipal.

Ao passar pela porta, o curto e escuro corredor logo levava, à esquerda, em direção ao foyer de entrada do Teatro Cultura Artística. Lá ficava uma barbearia que, durante décadas, cuidou dos cabelos de senhores frequentadores do centro e também de artistas ilustres. E dali se podia chegar tanto à Sala Rubens Sverner, onde atores como Cacilda Becker, Jardel Filho e Paulo Autran realizaram atuações memoráveis; ou então subir para o primeiro andar e entrar na Sala Esther Mesquita, que a partir de 1947 testemunhou algumas das principais apresentações de um século de vida cultural em São Paulo, de concertos de Villa-Lobos a recitais de Yo-Yo Ma ou Nelson Freire.

A porta continua lá, no mesmo lugar, mas hoje entram por ela 150 funcionários que trabalham desde junho de 2018 na construção do novo Teatro Cultura Artística. Agora provisório, o corredor ainda é curto. E segue revelando o foyer, despido de sua decoração original, com o chão em concreto batido – mas já revelando também a sala menor, que já tem cara de teatro, com palco e a plateia pronta para receber 400 cadeiras.

Mas antes de entrar na sala, o prédio – ou o que restou dele – carrega ainda história a ser contada. Em uma abertura onde ficava uma das portas corta-fogo, as cinzas, mesmo tanto tempo depois, ainda nos remetem à madrugada de 17 de agosto de 2008, quando um incêndio destruiu quase inteiramente o antigo Cultura Artística. As portas funcionaram. A partir delas até a fachada, decorada com o painel de Di Cavalcanti, o prédio foi preservado. Mas as salas de espetáculos, os bastidores, pianos, cenários – tudo acabou destruído, deixando um espaço quase vazio, não fosse o entulho e o aço retorcido. A cidade parou naquele domingo para assistir ao trabalho dos bombeiros. Incêndio põe abaixo o Teatro Cultura Artística, dizia a primeira página do jornal O Estado de S. Paulo no dia 18 de agosto, com uma foto na qual as chamas se erguiam do teatro já destruído.

Nos meses seguintes, os planos de reconstrução começaram – com desafios próprios. Algumas versões do projeto se sucederam, tentando dialogar com a fachada original, mas incluindo estruturas mais amplas tanto de palco quanto de escritórios, com uma torre ao lado do teatro. Com o tempo, no entanto, o projeto foi redimensionado. A sala passou a ter a configuração de um espaço para música de câmara, ou seja, para pequenas formações. E ganhou uma estrutura para atividades pedagógicas e de formação no projeto assinado pelo arquiteto Paulo Bruna.

“Essa ideia nos pareceu bastante interessante, porque atendia a nossas necessidades e ao mesmo tempo dava a São Paulo um espaço que a cidade não tinha, que é uma sala de qualidade para a música de câmara”, diz o superintendente da Cultura Artística Frederico Lohmann, enquanto caminha pelas obras, cuja primeira fase deve ser encerrada ainda este mês. “Com o prédio começando a ganhar forma, a nossa sensação é de que acertamos exatamente na proporção, à luz daquilo que imaginamos.”

Impacto

De volta ao foyer do térreo, o único ponto de interesse não é a presença já da entrada para a pequena sala de apresentações, que no novo projeto servirá para teatro, palestras e outras atividades, ganhando o caráter de um uso flexível. Olhando em direção à rua, uma fileira de colunas demarca o que é novo e o que foi preservado pelas chamas. Nessa área, as paredes trazem avisos, “respeitados com todo cuidado”, diz um dos funcionários que trabalhavam na obra na manhã da última quarta-feira, 17. “Manter alvenaria”, diz um deles. “Remover revestimento cuidadosamente”, pede outro.

Isso tudo porque, nessa área, o objetivo, respeitando as regras de patrimônio, é manter o projeto original – as pastilhas verdes e azuis que decoravam o chão e as colunas foram extraídas para um delicado processo de recuperação antes de serem colocadas de volta.

O acesso aos pavimentos superiores se dá por escadas na lateral – e aqui o trajeto é acompanhado de noções a respeito de como o novo projeto criou maior espaço de trânsito para o público, assim como para os artistas. Mas, depois de dois lances de subida, as explicações se perdem na memória por conta do impacto provocado pelo que já é possível vislumbrar: a nova sala de espetáculos principal do Cultura Artística.

As dimensões são parecidas com as do teatro antigo. Mas a configuração é totalmente diferente. A primeira diferença está no balcão que fica ao fundo do palco e o rodeia, dando ao teatro a cara de uma arena (ali poderão ficar tanto o público quanto cantores de um coral, quando o concerto assim pedir).

A plateia principal, por sua vez, está dividida entre o térreo e uma arquibancada superior que, ainda em concreto, o observador parece perder de vista em direção ao alto (serão cerca de 750 lugares). Nela, já há um pequeno detalhe em branco, um protótipo de como será a decoração final da sala. Mais ao alto, já está reservado o espaço para a cabine técnica que, mais do que controlar a luz, será também um estúdio de gravação: os microfones estarão instalados em pontos-chave da sala, permitindo o registro, ao vivo e com qualidade, de qualquer apresentação.

A descida se dá pelo outro lado do prédio, onde há uma parede de vidro que permite a quem estiver na Praça Roosevelt observar a sala – e vice-versa. É um dos pontos principais do novo projeto, simbólico da ideia de se estabelecer entre o teatro e a cidade uma nova e mais aberta relação, como diz Lohmann. E, pelo mesmo corredor, se tem acesso à rua mais uma vez. Com o fim da primeira fase das obras, o prédio será fechado, à espera de verbas para a conclusão, o que deve acontecer em 2021. Há ainda muito chão pela frente. Mas, olhando para o alto, o painel de Di Cavalcanti, já restaurado, parece ter cores ainda mais vivas. Pode ser impressão – mas talvez ele esteja feliz por, dez anos depois do incêndio, não estar mais sozinho no número 236 da Nestor Pestana.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.