18/09/2017 - 9:00
Quando se fala em Nelson Pereira dos Santos, estamos nos referindo simplesmente ao pai do moderno cinema brasileiro. Foi Nelson, ainda nos anos 1950, quem, com sua aclimatação nacional do neorrealismo italiano, abriu caminho para o Cinema Novo, o mais importante movimento do cinema nacional. Por incrível que pareça – e essas coisas só acontecem no Brasil -, não tínhamos ainda os filmes de Nelson Pereira em cópias aceitáveis. A primeira caixa de DVDs, lançada pela Bretz Filmes, cobrindo o período de 1956 a 1967 com cinco filmes restaurados, começa a suprir essa lacuna.
Outras caixas virão até o aniversário do cineasta, que fará 90 anos em 2018. As outras três caixas abrangerão a produção do artista de 1967 a 2012. Em tese, ficam faltando os filmes dirigidos por Nelson após essa data.
Nesta primeira remessa, temos, em ordem cronológica, Rio Zona Norte (1956), Mandacaru Vermelho (1960), Boca de Ouro (1963), Vidas Secas (1963) e El Justicero (1967). Falta, justamente, o primeiro dos longas, o mitológico Rio 40 Graus, sem negativos disponíveis, o que gerou um litígio entre o cineasta e a Cinemateca Brasileira, onde estavam depositados para restauro. Em reportagem anterior, sobre os 60 anos de atividade de Nelson Pereira, o Estado apurou essa questão dos negativos da obra, ainda longe de ser resolvida. Rio 40 Graus sobrevive em cópias disponíveis até na internet, porém de má qualidade.
Nesse pacote, lançado pela Bretz, temos a década inicial, ou pouco mais, de uma carreira notável. As cópias estão belíssimas e os DVDs, recheados de extras. Rio Zona Norte faz par com o ausente Rio 40 Graus. Se neste, o foco era posto em cinco meninos do morro num domingo de futebol, naquele, o protagonista é um compositor popular, interpretado por Grande Otelo.
A história de Rio Zona Norte é inspirada na vida do sambista Zé Ketti, amigo de Nelson. Otelo é o compositor Espírito da Luz Soares, que sonha ter um samba gravado por Angela Maria, a Rainha do Rádio. A narrativa é estruturada em flashback, com o compositor delirando em coma depois de haver despencado de um trem.
Houve cobrança da crítica, pois Nelson se afastava do cânone neorrealista de Rio 40 Graus. Apesar da cor local, tentava uma narrativa psicológica, com o protagonista recordando sua vida, a exploração que sofria, os problemas com o filho que se tornara ladrão, etc. De qualquer forma, o filme, hoje peça de estudo indispensável do período, em seu tempo não funcionou, nem para a crítica nem para o público.
O seguinte – Mandacaru Vermelho – é um caso típico de cinematografia como a brasileira, feita de acidentes de percurso e descontinuidades. Nelson acalentava o desejo de filmar o romance de Graciliano Ramos, Vidas Secas, texto de forte impacto sobre a fome e a desigualdade social. Conseguidos os recursos, deslocou-se para o Nordeste com a equipe. Acontece que caiu uma chuvarada sobre o sertão, deixando-o verdejante como um jardim.
Impossível filmar Vidas Secas naquele cenário. Mas não havia como recuar. Nelson improvisou um roteiro, tornou-se ele próprio protagonista e completou com sua equipe técnica o resto do elenco. Mandacaru Vermelho se tornou um nordestern improvisado, segundo o próprio diretor, “um rascunho de filme”.
Bem diferente é a situação de Boca de Ouro, adaptado da peça de Nelson Rodrigues. Com Jece Valadão no papel do bicheiro que dominava a zona norte carioca, e Odete Lara como sua ex-amante, o filme é muito bem realizado. Visto à distância, mantém-se como uma das melhores versões do texto de Nelson Rodrigues, um dos autores mais adaptados para o cinema nacional.
Bem filmado, mas em feitio mais clássico, dialoga com Rashomon, de Akira Kurosawa, e sua ideia de que uma mesma história pode ser contada por diversos pontos de vista, questionando assim a própria noção de verdade absoluta. Quem traz três visões diferentes sobre o chefão do jogo do bicho, já morto, é Guigui, vivida por Odete Lara num dos seus melhores papéis no cinema (o outro, comparável, seria em Noite Vazia, de Walter Hugo Khouri).
Em 1963, por fim, Nelson chega ao projeto de Vidas Secas, sua obra-prima. Escolhe uma funcionária do Laboratório Líder, Maria Ribeiro, para ser Sinha Vitória, uma das retirantes. O homem será o ator Átila Iório. Os meninos serão escolhidos no local, assim como o papagaio e a cadela Baleia. Dessa forma, compõe-se a família que foge da seca e percorre o sertão sob sol causticante. A narrativa é seca como o título do filme (e do livro). A fotografia de Luiz Carlos Barreto, chapada, agressiva, sem filtros, torna lancinante a experiência da sobrevida no sertão. A trilha sonora é composta de sons, como o gemido do carro de bois. O filme foi a Cannes, causou polêmica e tornou-se clássico. Duro, poético, político sem ser panfletário, é um marco do Cinema Novo e do cinema brasileiro em toda sua história.
Já em El Justicero, encontramos Nelson em outro registro. O “herói” é um playboy de Ipanema (Arduíno Colassanti), filho de um general milionário, e que se julga protetor das mulheres indefesas e dos fracos e oprimidos. Baseado em romance de João Bethencourt, El Justicero tem lá sua graça, com um estilo meio nouvelle vague, feito de cortes, descontinuidades e um jogo humorístico com o nonsense. Sofreu muito com a censura.
Esses cinco discos – um para cada longa – vêm repletos de extras. Em quatro deles, o próprio Nelson comenta o filme da vez – a exceção no de Vidas Secas. Há outros extras, que devem ser destacados, como o depoimento da pesquisadora Mariarosaria Fabris sobre a aclimatação do neorrealismo italiano em terra brasileira.
O divertido depoimento de Daniel Filho, um dos personagens de Boca de Ouro, Leleco, uma das vítimas do bicheiro, é imperdível. E, pelo menos, dois curtas-metragens são dignos de nota. Um deles do próprio Nelson, Um Jovem de 74 anos, sobre o Jornal do Brasil, onde trabalhou como revisor para pagar dívidas acumuladas como cineasta. Como se Morre no Cinema, de Luelane Corrêa, mix de documentário e ficção, conta os bastidores de Vidas Secas pelo ponto de vista de um dos personagens – o papagaio da família. É divertido e informativo.
BOX NELSON PEREIRA DOS SANTOS, V.1
Direção: Nelson Pereira dos Santos
Distribuidora: Bretz Filmes
(5 discos, R$ 159,90)
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.