Das “Freedom Songs” do movimento americano pelos direitos civis a “Bella Ciao” da resistência italiana, os revolucionários ao longo da história sempre se uniram em torno de um hino. Em 2010-2011, a Primavera Árabe não se desviou desta tradição.

Os manifestantes que tomaram as ruas da Tunísia no final de 2010 e depois aos poucos em outros países produziram canções revolucionárias mesclando revolta, humor e criatividade, depois de muito tempo silenciados.

Confira a seguir uma lista das canções revolucionárias que marcaram a Primavera Árabe em dez países que foram palco de movimentos, inclusive durante a segunda onda, em 2019.

– TUNÍSIA – ‘Rais Lebled’ –

A Tunísia foi a primeira a viver uma contestação popular de envergadura contra o regime, fazendo de “Rais Lebled” a trilha sonora da Primavera então em formação.

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O sucesso sombrio e cru do rapper “El Général” (Hamada Ben Amor, seu nome de registro) pinta um triste quadro do estado do país no comando de Zine El Abidine ben Ali, com esta frase em loop: “Sr. presidente, seu povo está morrendo”.

“Rais Lebled” (“o presidente do país” em árabe) enumera todos os males que levaram o vendedor ambulante Mohamed Bouazizi a atear fogo em si mesmo em 17 de dezembro de 2010 em Sidi Bouzid (centro).

O rapper de 21 anos lançou sua música em 7 de novembro, aniversário da ascensão de Ben Ali ao poder, em 1987.

Poucos dias após o início dos protestos, ele lançou outro sucesso e foi brevemente preso antes que a revolta derrubasse Ben Ali.

Em 2011, Ben Amor foi classificado entre as 100 pessoas mais influentes do ano pela revista Time.

Sua carreira nunca decolou, mas sua música, “Rais Lebled”, fonte de inspiração na região, é considerada “o hino da Primavera Árabe”.

– EGITO – “Irhal” –

As multidões na praça Tahrir, no Cairo, jubilosas ao som do hit de Ramy Essam, simbolizaram a euforia do início da “Primavera” egípcia.

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O cantor tinha apenas 24 anos quando subiu ao palco, no final de janeiro de 2011, para cantar seu sucesso diante dos manifestantes que acampavam na principal praça da capital.

“Estou em dívida com a revolução”, diz.

“Antes de 2011, não me via como músico ou artista (…): era um manifestante com um violão que acabou por utilizá-lo como ferramenta em benefício do movimento”, acrescenta.

Desconhecido do grande público até então, Ramy Essam não podia sonhar com um palco maior na época e sua música, “Irhal” (Fora), tendo como alvo o presidente Hosni Mubarak, rapidamente se tornou o hino dos revolucionários.

Se suas estrofes engajadas o impeliram para a frente do palco, também o levaram a ser preso e torturado.

“Tive a chance de participar dessa revolução. Ela me ensinou sobre a vida, a liberdade”, diz hoje à AFP da Suécia, onde se refugiou após a chegada ao poder de Abdel Fattah al-Sissi em 2013-2014.

– LÍBIA – “Zenga Zenga” –

A revolta na Líbia gerou um dos sucessos mais improváveis dos levantes árabes: um vídeo viral estrelado por Muammar Khaddafi em um remix extravagante dirigido por… um israelense.

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Depois da Tunísia e do Egito, os ventos da mudança não pouparam o mais antigo ditador regional, no poder desde 1969.

Em fevereiro de 2011, em face de uma revolta sem precedentes, ele fez um discurso abatido na televisão.

O título da canção vem da palavra usada por Khaddafi para designar a “rua”, quando ele jura “purificar a Líbia” do inimigo, caçando dissidentes em cada casa e em cada “rua”.

Tendo se tornado motivo de chacota na web, os internautas repetiam sem parar um remix intitulado “Zenga, Zenga”, no qual as palavras de Khaddafi foram ritmadas com a melodia de uma canção do rapper americano Pitbull.

Os líbios perderam um pouco a animação quando descobriram que o vídeo havia sido produzido pelo músico israelense Noy Alooshe. Mas isso não impediu sua propagação no Youtube, com mais de cinco milhões de visualizações.

– IÊMEN- “Hourriya” –

No início da revolução muitas vezes esquecida no Iêmen, a canção otimista de Khaled al-Zaher, “Hourriya” (Liberdade), prevaleceu.

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Combinando ritmos tradicional e samba, o refrão “Liberdade, liberdade, somos um povo livre”, teve um breve sucesso no início de 2011. A música se destacou entre uma infinidade de canções revolucionárias.

O cantor Khaled al-Zaher já era conhecido em seu país por suas canções patrióticas e revolucionárias. Mas sua fama teve o mesmo destino da revolução iemenita, a distante memória de uma breve esperança em um país dilacerado pela guerra civil.

– SÍRIA – “Yalla Erhal ya Bachar” –

A contestação na Síria foi pontuada por uma variedade de canções revolucionárias, muitas vezes inspiradas em melodias tradicionais.

Uma delas, uma criação original que se tornou o hino indiscutível da revolta, simboliza o desejo profundo de mudança, mas também o destino trágico do movimento.

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O vídeo noturno e borrado de uma multidão reunida na cidade de Hama (centro), entoando slogans contra o presidente Bashar al-Assad, lembra o risco de morte sofrido por cada participante da manifestação.

Ibrahim Qachouch, que foi creditado por “Yalla Erhal ya Bashar” (“Fora Bashar”), tornou-se então o herói sem rosto de uma luta épica contra o regime.

Em áreas controladas pelos rebeldes, o refrão inebriante chamando Assad de “mentiroso” e “burro” costuma ser tocado no volume máximo em microônibus, cantado pelos combatentes como um grito de guerra, adotado como toque de chamada do celular.

Este ataque contra o presidente Assad, Qachouch pagou com a vida. Poucos meses depois, aquele que foi batizado de “pássaro zombeteiro da revolução” foi encontrado morto em um rio, com a garganta cortada, as cordas vocais arrancadas.

Em 2016, uma investigação revelou que Ibrahim Qachouch não era o autor da música, composta por Abdel Rahmane Farhoud, que ficou em silêncio após saber da trágica morte de seu colega.

– MARROCOS – “Iradat al Hayat” –

A contestação no Marrocos, conhecida como “movimento 20 de fevereiro”, também teve sua canção cult, um poema tunisiano adaptado para o dialeto local e transformado em canção por um rapper de Casablanca.

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“Iradat al Hayat” (“A vontade de viver”), foi composta pelo rapper “Lhaqed” (“o rancor”) a partir do famoso poema de Abu el Kacem Chebbi.

O artista, chamado Mouad Belghawat, cumpriu várias sentenças de prisão após a difusão de clipes e atualmente mora na Bélgica, onde obteve asilo político.

– IRAQUE – “Thayl Awaj” –

O Iraque experimentou uma “Primavera tardia”, com dezenas de milhares de pessoas protestando pelo país em outubro de 2019. O movimento foi resumido em uma música viral.

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“Thayl Awaj” significa “rabo torcido” e se refere, no jargão iraquiano, aos aliados políticos de Teerã, vistos como “tentáculos” do regime iraniano.

A canção e o videoclipe foram exibidos na emissora alemã Deustche Welle como parte do “Al Basheer Show”, um programa satírico muito popular e influente, cujo apresentador Ahmad al-Basheer está exilado na Jordânia.

O clipe destaca todos os símbolos do levante – do “restaurante turco” que se tornou o “centro de comando” de fato dos manifestantes aos tuk-tuks que transportam os feridos.

O vídeo se tornou extremamente popular, com quase 15 milhões de visualizações no YouTube.

– LÍBANO – “Hela Ho” –

Provavelmente não é a canção revolucionária mais poética, mas se tornou uma das mais cantadas durante o movimento de protesto lançado em 17 de outubro de 2019 no Líbano.

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“Hela ho” tem como alvo específico Gebran Bassil, genro do presidente Michel Aoun, então ministro das Relações Exteriores e líder do partido-chave da aliança no poder. E enumera os males denunciados pela rua: corrupção, nepotismo, incompetência.

Durante semanas, o refrão foi entoado por manifestantes e nas redes sociais. É inspirado em uma canção da década de 1970 popularizada pelos fãs do gigante do futebol egípcio Al-Ahly e na famosa canção egípcia multilíngue “Ya Moustafa” (Querida, eu te amo).

– ARGÉLIA – “Liberté” –

Quando o rapper argelino Soolking lançou seu hit “Liberté” em março de 2019, as ruas de Argel ferviam e clamavam por liberdade e democracia.

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Co-produzida com o coletivo Ouled El Bahdja, que reúne simpatizantes da União esportiva de la médina d’Alger (USMA) e é uma das pontas de lança do movimento, a música rapidamente se tornou viral.

Escrita em francês, atinge todos os componentes da sociedade representados nas ruas de Argel, onde as multidões gritam “a liberdade, a liberdade, a liberdade, está em primeiro lugar em nossos corações”.

O hino, que cruzou fronteiras, totalizou quase 250 milhões de visualizações no YouTube.

Criado em um subúrbio de Argel, Soolking desfrutou do sucesso pós-revolução que reforçou sua aura. Mas um show durante o qual uma debandada deixou vários mortos em agosto de 2019 e uma homenagem nas redes ao falecido chefe do exército Ahmed Gaïd Salah manchou sua imagem como ícone da “revolução”.

– SUDÃO – ‘Blood’ –

Um dos momentos mais fortes das revoltas árabes aconteceu no centro de Cartum em 2019, quando o rapper sudanês Ayman Mao subiu ao palco.

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Chegando dos Estados Unidos no dia 25 de abril, o artista seguiu direto do aeroporto para a praça principal da contestação.

Com boné preto, ele canta “Blood”, uma de suas canções mais conhecidas, diante de um oceano de manifestantes iluminando o céu com seus smartphones. Após cada frase, a multidão canta “Thawra” (“Revolução”).

A energia liberada naquela noite encoraja os manifestantes a continuar sua luta, apesar da repressão.

Poucas semanas depois, o título do que se tornou o hino da revolução ganha seu sentido original. No dia 3 de junho, no mesmo local, as forças de segurança reprimiram de forma sangrenta uma manifestação contra o poder.

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  1. https://www.youtube.com/watch?v=IeGlJ7OouR0
  2. https://www.youtube.com/watch?v=_L9cFF0LwVY
  3. https://www.youtube.com/watch?v=cBY-0n4esNY
  4. https://www.youtube.com/watch?v=Fb1ALXZSFXA
  5. https://www.youtube.com/watch?v=a-qDRkZ1354
  6. https://www.youtube.com/watch?v=Y1tBEejCnYU
  7. https://www.youtube.com/watch?v=8eQEdrSk6Yg
  8. https://www.youtube.com/watch?v=El_azb_TLQg
  9. https://www.youtube.com/watch?v=CTAH-AqYm48
  10. https://www.youtube.com/watch?v=nEZ1N_c_YHo