O modelo de clube-empresa adotado pela grande maioria dos clubes das cinco principais ligas de futebol da Europa pode ser um espelho para os times brasileiros, apontou um estudo elaborado pela consultoria Ernst & Young. O documento mostrou que 96% das 202 equipes da primeira e segunda divisƵes das ligas da Alemanha, Espanha, FranƧa, Inglaterra e ItĆ”lia sĆ£o entidades privadas, enquanto que no Brasil, onde o projeto que incentiva os times brasileiros a saĆrem do modelo de associaĆ§Ć£o civil para empresa, limitada ou sociedade anĆ“nima estĆ” parado no Senado, apenas trĆŖs clubes dos 40 que disputam a SĆ©rie A e B tĆŖm formato empresarial.
Com base em uma ferramenta que consolida dados e informaƧƵes da indĆŗstria do esporte, o documento analisou as estruturas jurĆdicas e societĆ”rias dos clubes brasileiros e europeus e as legislaƧƵes e regulamentaƧƵes sobre o projeto clube-empresa nesses mercados.
O cenĆ”rio das principais ligas europeias Ć© o seguinte: na FranƧa, Inglaterra e ItĆ”lia, todos os clubes da primeira e segunda divisƵes sĆ£o empresas, enquanto que na Espanha o porcentual Ć© de 90% e na Alemanha, de 86%. Vale ressaltar que na Espanha, FranƧa e ItĆ”lia, essa transformaĆ§Ć£o ocorreu de forma obrigatĆ³ria, por meio de lei.
“Tornar-se empresa pode ser a soluĆ§Ć£o para muitos casos. O projeto do clube-empresa Ć© um meio e nĆ£o um fim da profissionalizaĆ§Ć£o dos clubes. A empresa exige uma governanƧa diferenciada, uma gestĆ£o mais profissional em sua essĆŖncia. Isso seria uma soluĆ§Ć£o principalmente para os clubes com problemas financeiros”, explicou ao EstadĆ£o Pedro Daniel, diretor-executivo da EY e um dos responsĆ”veis pela anĆ”lise.
No entanto, ainda hĆ” importantes clubes europeus que permanecem no modelo associativo. Os principais sĆ£o os gigantes espanhĆ³is Real Madrid e Barcelona, que sĆ³ nĆ£o foram obrigados a adotar o formato empresarial porque se mantĆŖm sustentĆ”veis financeiramente, ou seja, sĆ£o rentĆ”veis. Isso tambĆ©m ocorreu com Osasuna e Athletic Bilbao.
O estudo aponta que alĆ©m da mudanƧa para a gestĆ£o empresarial, outros aspectos foram importantes para a transformaĆ§Ć£o e o desenvolvimento das ligas europeias, como a implementaĆ§Ć£o do fair play financeiro e a centralizaĆ§Ć£o da negociaĆ§Ć£o dos direitos de transmissĆ£o. Essas mudanƧas jĆ” aconteceram hĆ” algum tempo, entre o final dos anos 1990 e o comeƧo deste sĆ©culo.
CENĆRIO NO BRASIL – No Brasil, dos 40 clubes que disputam a primeira e segunda divisƵes do Campeonato Brasileiro, somente trĆŖs possuem formato empresarial: Botafogo-SP, CuiabĆ” e Red Bull Bragantino. O AmĆ©rica-MG tambĆ©m estĆ” na fase final do processo para se tornar clube-empresa. Os demais sĆ£o associaƧƵes sem fins lucrativos. Atualmente a legislaĆ§Ć£o brasileira nĆ£o determina a forma jurĆdica que os clubes devem adotar, portanto eles podem optar por qualquer modelo previsto na lei. Em termos tributĆ”rios, as associaƧƵes estĆ£o sujeitas Ć isenĆ§Ć£o nos impostos federais, bem como ao pagamento de Imposto de Renda e contribuiĆ§Ć£o social, enquanto que clubes com a forma jurĆdica de empresa precisam recolher PIS/Cofins e o Imposto de Renda sobre o lucro de acordo com o regime escolhido.
Executivo da EY, Pedro Daniel avalia que o Brasil tem potencial para atrair investimentos estrangeiros, mas que, para isso, Ć© necessĆ”rio regular o mercado para trazer seguranƧa jurĆdica e financeira aos investidores. Ele considera que o projeto clube-empresa pode provocar uma “mudanƧa estrutural no futebol brasileiro” e ser “uma alavanca para a profissionalizaĆ§Ć£o da indĆŗstria do futebol”.
“NĆ³s somos um celeiro interessante, temos um cĆ¢mbio desvalorizado, o que permite uma empresa ter produĆ§Ć£o em real e vender em euro. Mas o investidor se sente inseguro de fazer isso. Se vocĆŖ quiser comprar um clube na Premier League, por exemplo, vocĆŖ passa por uma sabatina, uma curadoria. Aqui no Brasil nĆ£o existe isso. Ć um cenĆ”rio nada propĆcio para investimento externo. Quanto mais risco, mais atrativo a gente fica para aventureiros”, analisou.
“Estamos falando de um mercado dos clubes da SĆ©rie A que faturam pouco mais de R$ 5 bilhƵes e tĆŖm um endividamento de quase R$ 8 bilhƵes. A gente vĆŖ a cada quatro ou cinco anos um novo refinanciamento tributĆ”rio sendo elaborado. A gente vĆŖ notĆcias todos os dias de salĆ”rios atrasados, baixa regulaĆ§Ć£o de fair play financeiro. Caso nĆ£o se crie essa situaĆ§Ć£o, o cenĆ”rio permanece”, complementou o diretor da EY.
O projeto clube-empresa (PL 5082/16), cujo relator Ć© o deputado Pedro Paulo (DEM-RJ), foi aprovado na CĆ¢mara no final de novembro de 2019. Desde entĆ£o, estĆ” parado no Senado Federal. A pauta esfriou por conta da pandemia de covid-19. A expectativa Ć© de que seja votado no primeiro semestre deste ano. Ao texto serĆ” agrupado o PL 5516/19, de autoria do senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG) e que prevĆŖ a criaĆ§Ć£o da Sociedade AnĆ“nima do Futebol (SAF), possibilitando a migraĆ§Ć£o de gestĆ£o associativa para a empresarial.
O Figueirense Ć© um exemplo a nĆ£o ser seguido e um alerta para quem busca o modelo empresarial de que Ć© preciso se blindar de gestƵes desastrosas. O clube tenta se reestruturar apĆ³s passar por uma experiĆŖncia malsucedida ao optar pela criaĆ§Ć£o de uma empresa limitada para administrar seu futebol, o Figueirense Ltda, e vender 95% de sua participaĆ§Ć£o para a holding Elephant ParticipaƧƵes SocietĆ”rias S/A, que, em teoria, colocaria dinheiro e profissionalizaria a administraĆ§Ć£o, mas quase levou o clube ao rebaixamento Ć SĆ©rie C. A empresa atrasou salĆ”rios e deixou de pagar comida e transporte para as categorias de base. O contrato, que tinha duraĆ§Ć£o de 20 anos, foi rompido em dezembro de 2019. Em marƧo do ano passado, o time catarinense anunciou acordo com uma multinacional responsĆ”vel pela reestruturaĆ§Ć£o financeira da equipe.
Ano passado, o EstadĆ£o mostrou que as 20 equipes da SĆ©rie A do Campeonato Brasileiro afirmaram ser favorĆ”veis aos projetos. Contudo, apenas Botafogo e AtlĆ©tico Goianiense mostraram-se adeptos Ć migraĆ§Ć£o de suas gestƵes.
REFERĆNCIA – O modelo alemĆ£o Ć© considerado uma referĆŖncia positiva, por ter exigido que mais de 50% das aƧƵes dos clubes fiquem sob domĆnio da associaĆ§Ć£o, isto Ć©, dos sĆ³cios da agremiaĆ§Ć£o, que dĆ£o a palavra final nas decisƵes e elegem o presidente. Em 1998, a Bundesliga permitiu aos clubes que se transformassem em empresas desde que fossem controlados majoritariamente por suas associaƧƵes. Atualmente, 75% dos clubes da primeira e segunda divisƵes “terceirizam” a gestĆ£o do futebol para entidades empresariais.
A regra 50+1, de acordo com a Liga AlemĆ£, visa proteger os clubes de proprietĆ”rios que busquem apenas o lucro, alĆ©m de salvaguardar os costumes e valores dos clubes e de seus torcedores. As exceƧƵes sĆ£o Bayer Leverkusen, Wolfsburg e Hoffenheim, controlados 100% por empresas, o que Ć© permitido pela liga sob a condiĆ§Ć£o de que o investidor tenha apoiado o time de forma substancial e contĆnua por mais de 20 anos.
Uma das potĆŖncias na Europa, o Bayern de Munique se manteve no controle da maioria das aƧƵes e destinou aƧƵes minoritĆ”rias a trĆŖs empresas: Adidas, Allianz e Audi. Todas tĆŖm cadeiras no conselho administrativo e cada uma possui 8,33% das aƧƵes do clube bĆ”varo.
Esse mecanismo evita que o fracasso financeiro da empresa gestora leve o clube Ć falĆŖncia, o que jĆ” aconteceu na ItĆ”lia com a Fiorentina, que teve que recomeƧar sua trajetĆ³ria na quarta divisĆ£o. “O modelo alemĆ£o funcionou lĆ” porque eles discutiram que estrangeiros nĆ£o dominassem o futebol local e eles tĆŖm uma economia forte o suficiente para conseguir fazer isso”, sintetiza Pedro Daniel.
INVESTIDORES – Com exceĆ§Ć£o da Inglaterra, as demais ligas possuem predominantemente investidores nacionais. Na ItĆ”lia, Espanha e FranƧa os proprietĆ”rios nacionais, em sua maioria (58%) possuem algum vĆnculo pessoal com o clube ou sĆ£o empresĆ”rios da regiĆ£o. 33% dos times que estĆ£o constituĆdos como empresas sĆ£o controlados por estrangeiros, sendo que 39% dos investidores de equipes que disputam a primeira divisĆ£o investem em outros esportes.
Dos 34 clubes controlados por estrangeiros nas cinco principais ligas, 44% pertencem majoritariamente a empresĆ”rios americanos ou chineses. Considerando as duas divisƵes, 64 times possuem investimento externo. Destes, metade sĆ£o de investidores dos Estados Unidos ou da China.
O perfil dos investidores se dividem em: mecenas locais (Rennes e Villarreal); torcedores que se unem como acionistas minoritĆ”rios (Sevilla e Real Sociedad); fundos de investimentos ou pessoas fĆsicas (Wolverhampton e Milan); empresas que buscam por meio da visibilidade e atratividade gerada pelo esporte como espaƧo de marketing fortalecer e expandir suas marcas (Leicester City e Red Bull); investidores com foco em desenvolver relaƧƵes polĆticas e de negĆ³cios por meio do futebol (PSG e Sheffield United); e o cross ownership (City Group), modelo em que investidores adquirem mais de um clube em mercados com diferentes caracterĆsticas de forma a implementar um “ecossistema produtivo do futebol” considerando formaĆ§Ć£o, captaĆ§Ć£o, venda de direitos e performance esportiva.