A vida estava nos trilhos: trabalho encaminhado, casa minimamente organizada, até aquele horário sagrado da academia estava reservado. Aí chega um bebê e tudo muda de lugar. É sobre essa reviravolta deliciosa e desesperadora que fala Mãe Fora da Caixa, que chegou aos cinemas nesta quinta-feira, 27.
Dirigido por Manuh Fontes e estrelado por Miá Mello e Danton Mello, o filme acompanha Manu, uma mulher que tinha a vida nos eixos até a filha chegar e mostrar que controle é uma ilusão muito bonita. Entre fraldas, noites em claro e uma culpa que parece não ter fim, ela vai descobrindo que ser mãe é também aceitar o caos e se reinventar no meio dele.
O projeto nasceu do livro de Thaís Vilarinho, virou peça de teatro (que Miá interpreta há seis anos, sempre lotando por onde passa) e agora ganha as telonas. Para a diretora, cada formato trouxe uma camada nova. “No cinema, consegui materializar esses personagens e dilatar o tempo. A maternidade é intensa, e o filme mostra isso sem romantizar”, explica Manuh ao Estadão.
Do palco para a tela
E é justamente aí que está a força da história: ela não quer vender a imagem da mãe perfeita, plena e realizada 24 horas por dia. Quer mostrar a real – com medo, exaustão, dúvidas e aquela sensação estranha de não se reconhecer mais no espelho.
Para Miá Mello, que carrega essa personagem há anos, o cinema trouxe a possibilidade de dar contornos mais precisos à Manu. “No teatro, é um lugar mais abstrato. A gente chama o público para imaginar junto. No cinema, ela passa a ter um nome, um marido, um rosto, uma história, um emprego. As dificuldades passam a ser reais”, conta a atriz ao Estadão.
A escolha foi por um tom naturalista em meio à comédia, que privilegia a verdade acima de tudo. “É uma maternidade muito verdadeira. E uma das coisas mais importantes foi inserir o homem nesse lugar já consciente do papel dele e da paternidade em 2025”, explica Miá.
Um pai presente
Ao lado de Manu está André, interpretado por Danton Mello. Ele é comandante de avião, aventureiro, apaixonado pela mulher e pela filha. Quer viver tudo intensamente, mas também está perdido. O personagem encara a paternidade, segundo a sinopse oficial, com “encanto e espanto”, revisitando o nascimento das próprias filhas – o medo do desconhecido, o cansaço, mas também a beleza de tudo aquilo.
A grande sacada do roteiro é não cair na armadilha do “pai bonzinho que ajuda”. André não é um coadjuvante nem um herói por trocar fralda. Ele é pai, ponto. Está presente, quer participar, mas mesmo assim a sobrecarga da mãe existe. “A gente não queria fazer um cara estereotipado, que não faz nada, ou que ajuda e acha que é sensacional por isso. Queríamos mostrar uma família que a gente já vê hoje em dia; e mesmo assim há desafios”, diz Miá.
No filme, há uma cena especialmente tocante: André conversa com o próprio pai, que criou cinco filhos sozinho depois de ficar viúvo. O conselho? “Aproveite”. Porque passa rápido. É um lembrete gentil de que cada um vai viver a paternidade (e a maternidade) do seu jeito, sem manual.
Miá conta que, ao longo desses seis anos de peça, tem recebido reações profundas do público. Certa vez, foi abordada por um homem numa praça. A mulher dele apenas acenou de longe. Ele veio agradecer, dizer que tinha tido uma conversa esclarecedora com a esposa, que os dois tinham chorado e que ele havia pedido desculpas a ela. “É tão interessante pensar que a gente pode, pela arte, mostrar para mais gente o puerpério, a maternidade verdadeira”, reflete a atriz.
Na peça, ela sempre faz uma pergunta à plateia: “Alguém está saindo sem o bebê pela primeira vez?”. As respostas, diz, são reveladoras. “Sempre tem alguém. E todas tiveram que deixar tudo extremamente organizado para sair de casa. Não foi apenas ‘estou saindo’. Às vezes ouço ‘meu marido participa, ele só não dá banho’. Aí eu pergunto: quantos banhos o bebê toma por dia? Então são questões que a gente precisa falar cada vez mais.”
Cinema sem filtro
Mãe Fora da Caixa chega num momento em que o cinema finalmente decidiu parar de fingir que ter filho é só alegria embrulhada em lacinho. Filmes como Tully, Canina e o ainda inédito Se eu Tivesse Pernas, Eu Te Chutaria já abriram essa conversa. Agora, o Brasil coloca sua voz nesse coro – com sotaque, jeitinho e urgência próprios.
“A realidade brasileira é grave. Mais de seis milhões de certidões de nascimento sem o nome do pai. Então sim, a gente precisa falar sobre isso”, reforça Miá. Para Manuh, quanto mais filmes tratarem do assunto, melhor. “É fundamental trazer diferentes perspectivas. A maternidade sempre foi muito idealizada, e muitas vezes sob olhares masculinos. Quando a gente traz um tema contado por um olhar feminino, com uma protagonista feminina, estamos trazendo outra perspectiva. E é isso que abre diálogo.”
A diretora destaca ainda a importância de ter mulheres em posições de liderança no audiovisual brasileiro. “O Mãe Fora da Caixa sela uma participação importante das mulheres no audiovisual brasileiro, com temas femininos. A gente vem numa batalha de trazer não só o protagonismo feminino para dentro das histórias, mas também em posições de comando”, diz.