O economista brasileiro Marcelo Neri, diretor do FGV Social (departamento da Fundação Getúlio Vargas), é um dos maiores estudiosos das questões econômicas e sociais do Brasil. Autor de diversos estudos mostrando os altos e baixos de um País que ainda não encontrou o equilíbrio entre crescimento e justiça social, ele defende uma reconciliação nacional para que isso seja alcançado. “A polarização pela qual passa o Brasil precisa ser atenuada.” Neri argumenta em favor da ampliação das redes de proteção social, como o Programa Bolsa Família, mesmo em tempos de ajuste fiscal e cortes de gastos. “Ele custa 0,5% do PIB. E causa efeito real maior do que qualquer outro programa”, afirma em entrevista à ISTOÉ. O economista também falou sobre os dados da Síntese de Indicadores Sociais, do IBGE, divulgados recentemente, mostrando o crescimento no Brasil do número de pobres (ganham até R$ 224 por mês) e o dos extremamente pobres (vivem com até R$ 140 por mês).

O senhor ficou surpreso com as conclusões apresentadas pelo IBGE?

Elas geraram certa surpresa. Primeiro porque estávamos falando de retomada da economia, com o PIB (Produto Interno Bruto) mostrando que saímos da recessão. E mesmo assim a renda dos brasileiros caiu 0,82%. A pobreza aumentou em três vezes e a extrema pobreza, em 13 vezes. E o pior é que essa desigualdade na base de distribuição, a que importa mais, aumentou bastante.

O que explica esse resultado?

A situação de desemprego muito alto, assim como o trabalho informal crescendo, forma o pano de fundo por trás disso. E há uma certa timidez em usar as redes de proteção social de que dispomos. Tivemos uma grande recessão e a renda do programa Bolsa Família caiu 4,1% por brasileiro entre 2016 e 2017. Talvez devêssemos aumentar a quantidade de beneficiários. Isso seria importante não só para evitar o aumento da extrema pobreza em 13% em um único ano e representar justiça social, mas também para manter o efeito multiplicador sobre o PIB que tem cada real gasto com o Bolsa Família.

Quanto é esse valor?

Ele é três vezes maior do que o causado pelo aumento de benefícios previdenciários, por exemplo. A elevação da extrema pobreza entre 2014 e 2015 havia sido ainda mais dramática: cresceu em 23%. E a elevação da pobreza, no mesmo período, foi de 19%. É importante lembrar que em meio a uma crise econômica deve-se usar a rede de proteção social, usar cada tostão nisso. No nosso caso, é o Bolsa Família.

Apesar dos benefícios, o programa ainda é alvo de muitas críticas, em especial o de ser assistencialista e, de alguma maneira, manter as pessoas em condições econômicas ruins sem habitá-las a sair do ciclo de dependência do benefício. O que o senhor acha desses argumentos?

Existe o preconceito. Mas antes do programa, criado no segundo mandato do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, chegávamos aos mais pobres jogando dinheiro do helicóptero. Era tudo meio indiscriminado. O Bolsa Família de fato mira nos mais pobres. É um produto de exportação brasileiro, com um bom custo-benefício.

Muitos defendem, porém, que antes de tudo deve-se fazer o ajuste das contas públicas e reformas, como a da Previdência.

O Brasil tem um ajuste fiscal a ser feito. Concordo com isso, assim como sei a importância e urgência na reforma da Previdência. Mas é importante que as pessoas saibam que o Bolsa Família não tem impacto fiscal significativo. Ele custa 0,5% do PIB. E causa efeito real maior do que qualquer outro programa, inclusive a longo prazo. Ele estimula a vacinação, rompe com a transmissão inter-geracional de pobreza. É uma estratégia de longa duração.

Imaginando que as projeções de crescimento do PIB de agora em diante estejam corretas (cerca de 2,5% ao ano até 2022, segundo o relatório Focus), o que se pode prever em relação à redução da pobreza no País?

Se formos pensar que cresceremos até 2030 nessa faixa, de forma consecutiva, a pobreza voltaria ao nível de 2014 dentro desses doze anos. Não podemos nos esquecer que a pobreza aumentou 33% nos últimos três anos. Foram mais 6,3 milhões de novos pobres, quase a população total do Paraguai (cerca de 6,9 milhões). O que houve de 2014 em diante é que as pessoas mais pobres foram as que mais sofreram.

Como o senhor acha que o governo do presidente eleito Jair Bolsonaro tratará o dilema de promover um aperto nos gastos e, ao mesmo tempo, expandir a atenção com as redes de proteção social às quais o senhor se refere?

Teremos que esperar para ver. Cabe a ele propor e realizar ações nesses sentidos. Teremos que fazer o ajuste fiscal, algo sempre muito duro, mas não se pode perder a sensibilidade social. E não aumentar a pobreza mais do que seria razoável e nem deprimir a economia mais do que seria razoável. O ajuste deve poupar os mais pobres. É preciso pensar em formas de elevar o ganho de produtividade também na base da distribuição. Enfim, a sensibilidade social é o que vai ditar o que irá acontecer. Mas a agenda econômica não é desculpa para colocar maior restrição aos pobres.

De que maneira se pode inserir a população beneficiada pelo Bolsa Família, por exemplo, no mercado de trabalho, cada vez mais competitivo e exigente de profissionais mais qualificados?

Temos que manter uma linha importante de discussões, que é a de pensar nas portas de entrada nos mercados e nas portas de saída da pobreza. Por exemplo, conectar os beneficiários do Bolsa Família com as oportunidades de emprego formal. Temos problemas em relação a empregos formais para pessoas de baixa renda. No entanto, devemos construir rampas que incentivem os integrantes do programa a procurar o emprego formal sem que isso os faça perder renda quando conseguirem.

Quais as principais conclusões do levantamento “Percepções da crise”, realizado pela FGV com a população de 124 países?

O Brasil se tornou um país desiludido. Existe um desencanto com o País e com sua capacidade de lidar com essa situação. Nos quesitos “medo da violência”, “descrença no sistema político” e “falta de confiança estatal” o País é o penúltimo pior: 68% sentem-se inseguros para andar à noite perto de casa, só 14% acreditam na honestidade das eleições e 82% não confiam no governo federal. A taxa de desaprovação da liderança política foi de 86%, a maior do mundo e a maior da série histórica. Esses dados nos ajudam a entender a renovação política realizada no primeiro turno das eleições e acontecimentos anteriores, como as manifestações de junho de 2013.

Esses sentimentos cresceram nos últimos anos?

O brasileiro era crítico em relação às instituições, mas isso se deteriorou com o tempo. Os dados nos tiram de uma zona de conforto. Às vezes há uma tendência de acharmos que o mundo está complicado, portanto o Brasil também está complicado. Não. O Brasil está bem mais complicado do que quase todos os outros países. Os números dão um retrato de um momento crítico não apenas desse ano, mas dos últimos quatro, cinco anos. Vivemos um momento psicossocial crítico.

Olhando mais para trás, tomando em consideração os 30 anos da Constituição brasileira, por exemplo, que avaliação é possível fazer da evolução do País?

Se observarmos dados de educação, expectativa de vida e pobreza, vemos que o Brasil teve avanços formidáveis nesse período. Porém, não fizemos avanços sociais na mesma medida. As nossas tarefas de casa do ponto de vista econômico não foram bem executadas. A expectativa de vida cresceu, mas não fizemos a reforma da Previdência. A escolaridade aumentou, mas nossa produtividade continua baixa. Os progressos sociais foram desconectados dos fundamentos econômicos. Isso frustrou a sociedade, que sente um mal-estar ao ser atendida em serviços públicos ruins nas áreas de educação, saúde e segurança.

A renovação do quadro político é um dos elementos desejados pela população e foi de certa forma obtida na eleição. O que mais pode ser feito para reverter o quadro de desânimo nacional?

Precisamos de um choque de confiança. O novo governo pode de alguma forma criar uma situação que leve a todos confiarem mais uns nos outros. Há uma certa irracionalidade coletiva. A desconfiança do brasileiro é extrema e disfuncional.

Adotar um choque de confiança seria possível em País ainda tão dividido?

Um exemplo clássico disso foi o que conseguiu o ex-presidente da África do Sul, Nelson Mandela. Ele uniu um país dividido na letra da lei.

Mas o senhor concorda que estamos bem longe de termos líderes à altura de Mandela?

Concordo que as circunstâncias não são as mais favoráveis. Mas quem poderia imaginar que um homem que passou 27 anos na prisão sairia com uma mensagem de reconciliação? A polarização pela qual passa o Brasil precisa ser atenuada. Hoje, o que mais define os brasileiros é o que eles não querem, e não o que desejam.

O senhor pode citar um momento da vida nacional no qual tenha dado certo movimentos semelhantes, de reunião de todos em torno de um só objetivo?

Aconteceu em 1994 com o Plano Real, no governo do ex-presidente Itamar Franco. Nenhum país tinha uma inflação tão alta quanto o Brasil. E o Real deu certo. A desigualdade caiu e a inflação foi controlada. Isso mostrou de que somos capazes. Temos que mostrar que somos uma sociedade evoluída. Porém, nossas reações têm sido instintivas e andamos em círculos. Superamos a inflação e ela voltou em 2015. Reduzimos a desigualdade e ela voltou a crescer. De alguma forma é preciso demonstrar que não somos uma sociedade primitiva, que gira em círculos de 10, 50 anos. Precisamos seguir na linha da evolução.